domingo, 26 de junho de 2011

SOLILÓQUIO

Gostei da palavra: o som, a escrita e o sentido. A língua portuguesa é tão rica e interessante que, às vezes, a gente só tem a oportunidade de conhecer palavras e vocábulos, acidentalmente. Foi o caso dessa aí.
Depois desse “acidente”, constato que, aqui na Toca, o que mais pratico é o solilóquio. Aliás, acho que em qualquer lugar em que esteja, estou praticando o solilóquio. Chega a ser um hábito, talvez até um vício.
Nas ruas, presto atenção nas pessoas e agora sei que muitas delas também praticam o solilóquio, seja andando, seja estacionado em alguma esquina ou num banco de praça.
Lembro-me de quando morava com a vovó Augusta, na Rua Bernardo Guimarães, 305, lá havia um vizinho, morador da Rua Piauí, que vivia em solilóquio. Toda a vizinhança comentava sem chamar de solilóquio aquela mania, claro. Achavam mesmo que era loucura (doideira, piração) e o chamavam de “o louco do Bairro Funcionários”.
À tarde, a Lúcia e eu nos sentávamos no portão da casa conversando sobre a viagem do papai e da mamãe para os Estados Unidos, sonhando com uma maneira de sair dali e conhecer o mundo. Era quando o soliloquista descia do bonde, na Rua Ceará. Ele subia nossa rua até a Piauí e virava à esquerda. Nunca vimos em qual das casas ele morava, pois havia várias casinhas parecidas, uns bangalôzinhos grudados uns nos outros, no rés da rua. Ele deveria ser funcionário público - origem do nome do bairro -, pois seus horários eram sistemáticos. Pela manhã, não o víamos, pois estávamos no Grupo, mas o tio Tonico nos contava que os dois saíam juntos para trabalhar. Eles se encontravam todo dia às onze da manhã, na rua em frente lá de casa, e pegavam o mesmo bonde. Tio Tonico descia antes e ia para o Hospital Militar, onde era Capitão dentista, e o soliloquista continuava, mas ele não sabia até onde. E a Lúcia e eu fiscalizávamos a volta dele para casa. Era quando soliloquava mais, talvez pelas preocupações que trazia do trabalho.
Anos mais tarde - até já contei sobre esse caso em outra crônica -, conheci um senhor que lançava os resultados da Loteria Mineira no quadro negro, em frente ao nosso escritório de advogados, na Avenida Afonso Pena. Naquele momento, ele também soliloquava, eloquentemente, talvez maldizendo a própria falta de sorte em mais uma rodada sem bilhete premiado.
Outro, de quem me lembro muito, era um brilhante advogado de Ribeirão Preto, nos anos 60, que ficava em solilóquio numa das esquinas da Praça Marechal Deodoro, bem no centro da cidade. Todos comentavam que ele era meio maluco, pois falava sozinho.
Afinal, soliloquar é coisa de doido mesmo. Acho que gente normal não soliloqua.
A minha prática soliloquista mais intensa é aqui na Toca; assim, não corro o risco de ser taxado de louco. Agora, por exemplo, só decido depois de um solilóquio intenso para tomar alguma decisão. Acho que estou meio viciado nessa coisa que, de pomposo, só tem um nome agradavelmente sonoro: solilóquio.
E você, leitor, também soliloqua?
Em Belo Horizonte, 24 de junho de 2011.

Como venho sugerindo, uma boa trilha sonora para Solilóquio é o Concierto de Aranjuez com o Paco de Lucia.

domingo, 19 de junho de 2011

COPACABANA: 1945

Naquele domingo de junho, acordamos mais cedo para ir à praia.
Papai acordou mais tarde, pois se levantava todo dia às 4 da manhã, para ir para o Hospital Central do Exército em Maguinhos. Ele pegava um ônibus  na Av. Nossa Senhora de Copacabana, ia até a estação da Central do Brasil e, de lá, pegava o trem que ia até Manguinhos, subúrbio do Rio de Janeiro.
Nós morávamos numa pensão na Rua Constante Ramos em Copacabana. Os quatro num quarto de fundo de uma casa que uma senhora alugava. Dona Nina só alugava os quartos para “gente de família”, como ela dizia. A família inteira num quartinho.
E os quatro da família do Primeiro Tenente Médico do Exército Brasileiro, Dr. Helvécio Brandão, se levantaram às sete e meia, para pegar um solzinho no Posto Seis da praia de
Copacabana. O dia estava lindo, como todos os dias do outono. Céu azul, claro, um ventinho morno que vinha com a brisa da praia, onde já estavam acampados diversos habitués da famosa praia.
Deitamo-nos em pequenas toalhas na areia fina e fofa sob um guarda-sol simples e colorido. Cada banda era de uma cor, que a mamãe havia espetado na areia. Ela sempre fazia estes trabalhos “mais duros”, sendo observada pelo papai que ficava em pé, ao lado dela, consentindo com o eficiente serviço da esposa.
Lembro-me de eu que tinha queimado o pulso no ferro de passar roupas e usava uma gase enrolada para proteger o ferimento. Mamãe me aconselhou, não deixe molhar viu filhinho! Senão, demora muito pra cicatrizar...
Vaidoso, como sempre, vesti meu calçãozinho azul marinho, de cinto branco, com uma fivela prateada, que eu adorava, a Lúcia vestiu seu maiozinho inteiro, cor de vinho, que eram as únicas roupas de praia que tínhamos, a mamãe seu maiô de duas peças com flores e o papai seu short verde claro e saímos de mãos dadas para a praia. Mamãe carregava as toalhas e o guarda-sol.
Morávamos a dois quarteirões da praia, era só atravessar a Rua Barata Ribeiro e a Av. Nossa Senhora de Copacabana, para chegarmos na Av. Atlântica, uma única pista estreita que atravessávamos com cuidado, no sinal, até chegarmos ao seu passeio decorado com aquelas curvas nas pedras portuguesas, cheio de banquinhos de marmorite.
De um pulo, estávamos na areia fina de uma praia enorme com alguns banhistas, frequentadores assíduos, mas muito pouca gente. Naquela manhã, juntou-se a nós Mr. Rown,  professor de inglês do papai. Pela cabeça dele passavam-se diversos planos  que ele não revelava. Alguns anos mais tarde descobrimos que ele pretendia morar nos Estados Unidos. Assim, começou a estudar inglês até ser convidado em 1947, já tendo dado baixa no exército, para lecionar numa universidade em Little Rock, capital do estado de Arkansas.
Sonhos, sonhos e mais sonhos.
Em Belo Horizonte, 12 de junho de 2011, sobre esta foto que está pregada na estante lá da Toca.
Ps. Como a relação de músicas brasileiras ainda  não está postada, sugiro ouvirem A Famous Myth, com o The Groop, para ilustrar musicalmente
esta crônica.

terça-feira, 14 de junho de 2011

O JACAREZÃO DA LULU

Hoje, saí disposto a mostrar a nova decoração das camisas Lacoste, que aumentou, consideravelmente, o tamanho do jacaré, aplicado ao lado esquerdo da peça.
A Lulu, minha sobrinha que mora em Lima, havia me presenteado com a novidade, dizendo que, a partir de agora, a fábrica peruana da famosa marca francesa, decidira mudar o lay-out de suas peças, promovendo o jacaré a um jacarezão na cor da camisa, com a boca vermelha aberta.
Assim, saí vestido com a nova camisa pela primeira vez para ver o que acontecia.
Já no elevador, aqui da Toca, um menino atleticano perguntou para a mãe, ao seu lado:
“Mamãe, o jacaré tá maior que o Galo?”- apontando para o meu peito. A mãe, muito bonita até, dirigiu-se a mim e falou: “Mudaram o tamanho do jacaré Lacoste?” Contei-lhe o que a Lulu havia me falado e ela, conformada, respondeu ao filhinho: “Não, meu bem, este jacaré do moço não tem nada a ver com o Galo. O jacaré é o símbolo de uma marca de roupas, não um time de futebol como o seu Galo”. Atento, ele descontraiu o cenho e abriu um sorrisinho pra mim, com certeza, já não se sentindo ameaçado pelo jacarezão.
No posto de gasolina, o frentista ficou olhando fixo para o dito cujo e tive que lhe
explicar senão derramava a gasolina na carroceria do automóvel.
Na Epamig, do porteiro da garagem à recepcionista, até os meus colegas da AUDI, também a nenhum deles passou despercebido. Nos corredores, até chegar a minha sala, os olhares de secretárias, contínuos e colegas, com os quais cruzei pelo caminho, encaravam o monstrengo e, para eles, não pude explicar. Devo estar passando por exibicionista.
Vou ver como vai correr o dia e continuo descrevendo a primeira experiência com o super jacaré no peito.
Ah! Na volta do trabalho, parei no Roça e Cia., na Rua Pouso Alegre, e o Luciano foi logo perguntando: “Onde é que você arrumou esse jacaré tão grande?” Com isto, todos os fregueses olharam para mim, viram o bicho e ficaram esperando a resposta. Aí, resolvi inventar uma história. Falei que a marca Lacoste estava muito preocupada com a concorrência, pois, a partir dela, lá pelos anos 50, decidiram inventar bichos e marquinhas para colocar nas suas roupas e apareceu de tudo: lobo, cavalo, jogador de hockey, elefantes, ursos, tracinhos e risquinhos, enfim, uma copiação danada, sem pé nem cabeça. E a Lacoste, enciumada, resolveu promover seu jacarezinho para enfrentar a concorrência com a bicharada novata. Acabei de contar a história, comprei umas tortinhas de frango com Catupiry, um queijo canastra para mofar e uma linguiça caipira bem apimentada para os tira-gostos da noite e fui embora.
Na Toca, fui à portaria pegar o jornal e as correspondências do dia e Seo Marcos perguntou: “Ué, doutor, que jacarezão, heim?” É, coisas do marketing moderno para enfrentar a concorrência - respondi. Ele não entendeu nada e continuou a assistir ao Jornal Nacional. Boa-noite, Seo Marcos.
Belo Horizonte, 3 de junho de 2011.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

BANHO FERVENDO OU BANHO GELADO

A cidade mineira de Três Pontas abriga a maior feira/exposição da América Latina sobre o café. E lá, outro dia, hospedei-me num hotel/pensão bem singular. Fiz o check-in por volta do meio-dia, com um senhor grisalho, que me informou sobre o que o hotel oferecia aos hóspedes: “Nada”- disse ele, “além da cama de casal e uma caminha de hóspede, ao lado.” “Como nada?”- perguntei estupefato. “Nada, senhor. Só cama limpa, café da manhã e banho quente”- respondeu. Pensei: melhorou muito, então.
Como não tinha alternativa, subi as escadas e caminhei pelo corredor comprido até o quartinho gelado, de número 25, e fui me certificando dos nadas de que me falou. No armário, dois cabides de madeira quebrados e um de lavanderia, com o arame enferrujado. Sem gavetas, somente duas prateleiras pregadas com pregos à vista, onde não pude deixar minhas camisas, com medo de se rasgarem nos pregos. Coloquei-as sobre a caminha reserva. Tinha uma tevê.  P&b? Cores? Era antiga e surrada, mas em cores, felizmente.  Daria para assistir ao jogo do Brasil com a Coréia do Norte, na Copa do Mundo.
Assim, ajeitei minhas coisas no armário infame e fui para a fazenda da EPAMIG, onde estava sendo montada a EXPOCAFÉ 2010.
O ambiente de uma feira na hora da montagem é uma verdadeira loucura, gente correndo de um lado pro outro, marteladas e serras barulhentas o tempo todo, gente chorando, muitos carros se movimentando, estandes sendo levantados, banheiros químicos enfileirados, muita poeira, muita lama, gente rindo, todos dispostos a colocar em funcionamento seus espaços e exibir seus produtos e serviços.
Voltei para o hotel/pensão a fim de tomar umas cervejas e aguardar o jogo do Brasil.
Cerveja? “Só no posto, aqui em frente”. E almoço? “Naquele toldo verde ali na esquina, no quarteirão de baixo.” Fui até lá e, na porta, o “chefe da cozinha”, que vinha subindo a rua correndo, falou ofegante: “Bem-vindo, senhor, escolha uma mesa, que já estão saindo uns bifes quentinhos, farofa e um feijão novinho”. Ele parecia ser filho do que havia me atendido na recepção do hotel. Olhei para o serviço de bufê, onde havia uma panela de arroz branco, ovos e batatas fritas, alface e tomate. Ótimo, pensei, comidinha caseira do sul de Minas. Curioso, não havia nenhuma mesa ocupada! Descobri, depois, que já eram duas da tarde e que o pessoal de lá almoça cedo mesmo, com as galinhas, entre onze e meio-dia. Coisas do interior.
Com isto, fui servido pessoalmente pelo chefe, que trouxe a comida para a minha mesa
e fui atendido como um lorde: com toda a mordomia. Uma senhora, que parecia esposa do senhor grisalho, meu primeiro atendente, trouxe o arroz, o ovo e as batatas fritas para a mesa e perguntou: “Mais alguma coisa, senhor?”
“Não, obrigado, senhora, quanto é?’’ “R$ 5,00” - ela respondeu. Agradeci e fui comprar as latinhas de cerveja no posto de gasolina, para assistir ao jogo. Vitória do Brasil assegurada por 2x1. Fui para a rua ver o movimento. Estava todo mundo doido, com aquelas cornetas horríveis de som e de aspecto: vuvu..., sei lá o quê, bandeiras voando nos carros em disparada nas ruas estreitas e mal calçadas, buzinaço. E o pior, crianças vestidas com as cores verde-amarelo, dependuradas nas janelas dos automóveis como pingentes patrióticos, que, nas esquinas, ficavam com meio corpo pra fora do carro. Uma loucura! Também, o Brasil tinha vencido a partida!
Voltei para o hotel para terminar com as latinhas reservas e me recolher. Estava arrasado com a falta de cuidado dos motoristas/pais/tios/avôs com suas crianças. Além do mais, não gosto das comemorações exageradas.
Com calma, engraxei minha botina e escovei o paletó para a festa de abertura da feira, com a presença do Governador do Estado.
Dormi como um justo e acordei disposto a ir acompanhar os arranjos finais da feira. O frio era de 5o.C e o banho foi antológico, num chuveiro elétrico que ou fornecia três gotas de água fervendo ou seis gotas de água gelada. Decidi, então, entrar e sair do banho nos intervalos da mudança da temperatura: entrava e saía, entrava e saía, entrava e saía, como um gato arrepiado! Quando saí do quarto, surgiu uma mocinha, também parecida com o senhor grisalho, para fazer a limpeza do quarto.
Ah! Havia me esquecido de que no banheiro não tinham colocado sabonetes e quando perguntei sobre eles o dito senhor me informou que havia acabado, mas ia providenciar .Ofereceu então, provisoriamente, uns sabonetinhos que estavam no banheiro da recepção. Eles quebraram o galho.
O café da manhã foi simples, mas, honesto. Pãozinho de sal com manteiga, coalhada,  biscoitinhos e doces caseiros e café com leite. Bem interior mesmo. Concluí que o hotel/pensão era bem de família, pai, mãe, dois filhos, todos trabalhando com muita dedicação para atender bem aos hóspedes. E só.
Na ocasião, lembrei-me de um tio que – contavam - só entrava no banho depois que o vapor do chuveiro quente invadisse todo o banheiro, praticamente tornando-o um forno.
Ah, e sobre ele dizia-se ainda que calçava as meias, sempre, nos mesmos pés, “sabendo” distingui-las, mesmo depois de lavadas, a qual pé cada uma correspondia, a do direito e a do esquerdo. Mais outra excentricidade desse tio que, neste momento, em meio a essas lembranças do folclore familiar, não poderia deixar passar. Para mim, ele era o máximo.
Roberto H. Brandão – junho/2010
Em tempo: Ao final de cada crônica nova, vou tomar a liberdade de sugerir uma das músicas postadas, para servir como back-ground. musical.
Assim, nesta crônica molhada, recomendo Entre dos Águas, do Paco de Lucia, uma execução magistral do grande guitarrista espanhol.