DE PORTO ALEGRE A BELO HORIZONTE
Embarcamos num trem em Porto Alegre, no verão de 1946, com destino a Belo Horizonte.
Mamãe, Lúcia e eu, muito animados para a longa jornada. A viagem durava quatro dias, com escalas em Curitiba, São Paulo, Barra do Piraí e, finalmente, Belo Horizonte. Nossas refeições haviam sido preparadas de véspera. Um delicioso frango assado com arroz de forno e farofa, para não estragar durante o longo percurso.
Papai, com data marcada, já havia viajado de avião, com escalas em São Paulo e Miami, para chegada em Little Rock, onde passaria a ocupar uma cadeira de professor-assistente de Microbiologia na Universidade do Arkansas, nos Estados Unidos.
Meus tios, irmãos da mamãe, um dia comentariam: é mais uma aventura extravagante do Helvécio.
Nossa bagagem vinha acompanhada dos móveis da sala de visitas - um sofá de três lugares e uma mesinha de centro, dos da sala de jantar que ia completa com um pequeno bufê e mesa com quatro cadeiras -, da cozinha um fogão elétrico de duas bocas, e dos quartos uma cama de casal, duas caminhas de solteiro com os respectivos colchões, uma cômoda e dois criados-mudos. Ah! E uma arca-baú com os panos de cama, mesa e banho e, embrulhados em jornal com as manchetes do fim da Segunda Guerra Mundial, os talheres, os pratos, as panelas e uma leiteira. Era tudo que tínhamos e estávamos indo de mudança para Belo Horizonte.
Essa viagem foi muito marcante nas nossas vidas. Começando pela Serra Gaúcha, onde o trenzinho serpenteava entre as montanhas e descia para o interior de Santa Catarina e para o cerrado do Paraná, onde uma vegetação rasteira contrastava com as belíssimas Araucárias e seus conhecidos perfis.
Numa primeira parada em Curitiba e, nos bancos de madeira da estação, fizemos nossa refeição.
Com muito cuidado, mamãe desembrulhou da fronha velha as marmitas e, com as colheres, comemos nas panelinhas mesmo, uma para cada um. Uma boa comidinha na movimentada estação.
Grandes e potentes máquinas elétricas puxavam o comboio-misto de passageiros e carga. Essas máquinas haviam substituído as antigas Marias Fumaças que só iríamos pegar em Barra do Pirai, na baldeação para o trecho Rio/Belo Horizonte.
Viajávamos em cadeiras e, para dormir, revezávamos no colo da mamãe, que só cochilava. De Curitiba a São Paulo, trecho noturno, não vimos nada, só fizemos mais uma refeição no balanço do trem.
Junto da marmita, mamãe havia colocado alguns vidros com água, onde bebíamos no bico mesmo.
Na enorme Estação da Central do Brasil em São Paulo, desembarcamos e trocamos imediatamente de trem, certificando-nos de que nossa "mudança" seria transportada para outro vagão. Mamãe fazia tudo, pois, crianças, ninguém nos ouviria. Os carregadores nos ajudavam com as malas de roupas que, também, não era muita coisa.
No trecho São Paulo/Rio, os vagões de passageiros eram um pouco mais confortáveis. Havia, até, no fundo, uma pequena cozinha onde montavam sanduíches e serviam sucos.
Acomodamo-nos em poltronas de couro, bem melhores que as outras, para seguir até Barra do Piraí.
E na estação de Barra, pela manhã, mais uma vez fizemos nossa refeição nos bancos de madeira típicos em todas as estações das estradas de ferro brasileiras e esperamos a chegada do trem que vinha do Rio. Estava atrasado um dia! Dormimos nos bancos da estação mesmo, Lúcia numa perna da mamãe e eu na outra.
Ficamos o dia inteiro sozinhos na estação deserta. Raramente passava alguém e só nós três, do grupo que viera de São Paulo, ia embarcar para Belo Horizonte. O trem chegou lá pelas 10 e partiu à meia-noite. Mamãe, heroicamente acordada, orientando os carregadores para ajeitar nossas tralhas no novo vagão, bem mais simples, mas nossas passagens davam direito a embarcarmos num vagão/leito no trem noturno. Um abençoado beliche nos acomodou e dormimos feito uns anjos até que o sol começou a entrar na cabine.
Mamãe, num salto, foi até a janela e mostrou a pequena Belo Horizonte quando o comboio, lentamente, cruzava pelo alto da Serra do Curral. Era o fim da nossa jornada.
Lá, disse ela, apontando, tudo vai ser diferente. Vocês vão ver!
Belo Horizonte, fevereiro/2014.
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Foi a infância da minha velhice. Fernanda Torres, no romance Fim