domingo, 19 de dezembro de 2010

Uma das minhas paixões MGB GT (foto)

UM PASSEIO PELAS MONTANHAS ROCHOSAS

Numa manhã gelada, 21º.C abaixo de zero, saímos de Greeley para um passeio pelas maravilhosas Montanhas Rochosas, no Colorado.
Era um dia incrível! O céu totalmente azul, sem uma nuvem sequer. O sol claro e até quentinho e as montanhas exuberantes e nevadas do pico até a metade. Pela State Expressway 25, atingimos o sopé da parede onde nos enfiamos em pequenas estradas que serpenteavam sobre a encosta com precipícios e barrancos altíssimos, os famosos cânions.
Roger sorria observando-me e tentando descobrir se eu estava encantado ou até um pouco amedrontado naquele fim de mundo. Buscávamos encontrar algum animal na área: big horns (chifrudos), veados, alces e até mesmo ursos, pois, a mata é preservada e toda a sua fauna e flora são rigorosamente vigiadas dia e noite. A Polícia não dá trégua. São inúmeros os pontos para fotografar, com enseadas especialmente montadas para os turistas ficarem completamente à vontade.
Chegamos a um sitio construído pela YMCA (Young Man Christian Association), lugar ideal para convenções e rápidas férias. Muito bem estruturado, com alojamentos individuais e coletivos, ideal para uma convenção dos Partners of the Américas, logo imaginei.
Ainda no caminho, paramos para umas comprinhas de souvenirs e também para conhecer pelo menos uma das inúmeras cervejarias, pequenas fábricas de cervejas, na região do Estes Park. Paramos numa que oferecia uma degustação bem curiosa:
Num balcão as diversas “bolachas”das marcas fabricadas e você apenas aponta qual vai querer experimentar. O garçon, então, serve uma generosa dose e você prova quantas quiser. Depois de algumas doses, acertamos com as nossas preferidas e subimos para um rápido almoço, na própria cervejaria, com vista para a área de produção: enormes alambiques, tanques e canos onde corre o precioso líquido. Eu já estava bem afamado como cervejista emérito. A Estes Park Brewery é instalada a uns 2.500 metros de altitude.
Nosso destino era o Rocky Mountain National Park e na subida paramos para o
Roger tirar umas fotos num lugar belíssimo onde, olhando para a paisagem logo abaixo, lembrei-me da música Slides (letra e música de T. Romeo) cantada pelo afinadíssimo Richard Harris num LP que o Caio me deu, que descreve:... the Colorado River trickles through its base like a deeply buried brook... Uma cena inesquecível, cravada na minha memória. É uma pena que eu não seja fotógrafo, pois poderia fazer uma sessão de slides com a trilha sonora do super disco. Sou uma besta!
Também uma pena não termos visto os bichos, a não ser três filhotes de veados que subiam morro acima, seu habitat natural.
Chegamos a uma altura de mais de 4.500 metros de onde se descortina visão privilegiada do belíssimo estado do Colorado, que é muito plano. A não ser pelas Rocky Mountains, que o dividem ao meio, o estado lembra um platô que deveria ser desértico há alguns séculos, no início da colonização americana. Lembra aquelas pradarias onde os cow-boys bandidos fugiam dos mocinhos nas histórias filmadas que tanto vimos na infância.
Já no final da tarde “…a sunset, another sunset, I know it looks indistinguishable from the last, but I remember the difference…”
Um passeio para a vida toda, promovido por um gentleman.
Thanks, Roger Brown.
Roberto Brandão – dez/2009

OS DEVASSOS DE GARULHOS

Tem dias que a gente acha que não vai acontecer nada. E acontece tudo ou quase tudo.
Embarquei num voo atrasado de Washington para São Paulo, que deveria chegar no Brasil às 10:30 e, no entanto, desembarcamos às 11:30, esgotados depois de um voo de nove horas e meia. O avião, um Boeing 777, penúltima geração, muito confortável. Sentado no corredor, ao lado de uma senhora de Lewistown/Montana, a segunda do dia, que falava e perguntava pouco. Do jeito que eu gosto. Tenho horror de quem entra na fila para o embarque e já, na escada ou no finger, começa a perguntar, de onde você é? prá onde você vai? e outras bobagens. Tenho vontade de responder como meu impaciente e neurastênico tio Aureliano: “vou para a China meu amigo!”
Não me interessa nada dessas prosas, pois já viajei com todo tipo de vizinho: industrial de caixas de fósforos, de rodas de liga leve, de camisinhas, comerciante de livros, promotor de eventos, músicos e, mais recentemente, turistas, pedreiros, aventureiros, voluntários para ajudar na luta contra o aquecimento global e outros bichos.
Assim, ao lado da senhora de Montana, fiz uma viagem silenciosa, seca (só uma cerveja a US$ 6,00) e cansativa. Chegamos em Sampa às onze e meia e corri para embarcar no vôo das 12:10 para Belo Horizonte. É claro, perdi o delicioso Duty Free Shop, na corrida passei limpo pela alfândega e, ainda, perdi o avião para BH. Apesar de ser uma conexão, a TAM não me deixou embarcar. Fizeram o favor de me embarcar no voo das 16:45. Reclamei por dentro e por fora, inutilmente.
Fui parar num bar chamado Devassa onde já havia tomado umas, na ida. Que sorte a minha! O bar, nome de recente marca de cerveja, é sensacional. Aliás, o ambiente de qualquer aeroporto é sensacional. É só sentar e ficar vendo o movimento. Gente de todo tipo, de toda raça, de toda língua, com todo tipo de bagagem, passa por ali. E eu adoro isto!
Sentado num canto, tomando conta da bagagem de mão e da indispensável capa de chuva, consultei o cardápio. Existiam três tipos de cerveja: a Devassa Loura, a Devassa Ruiva e a Devassa Negra. Pedi uma Negra e umas batatas fritas pra passar o tempo. Eram 13:00 e havia tempo de sobra. Lá pelas 14:00 entraram duas jovens senhoras, que esperavam para o embarque num vôo para Salvador/BA, como soube depois. Acho que também pediram cerveja, sem especificar o tipo. Acabei a minha e pedi novamente: “Por favor, mais duas Devassas Negras”. As duas olharam pra mim assustadíssimas e perguntaram: “O quê é que o senhor quer?” Brinquei: “Só duas Devassas Negras. Vamos ver como elas vêm.” Aliás, pra quem não está no ambiente ou acaba de chegar, é uma surpresa! O quê será que vai chegar? E a garçonete trouxe as duas cervejas absolutamente normais, engarrafadas long-neck, bem geladas.
Falei com elas: “Estão vendo? Nada de mais”. E as duas dispararam a conversar e a contar suas vidas. Eram duas irmãs que não se viam há algum tempo e resolveram passar umas férias na Bahia para conversarem mais à vontade, sem pai nem mãe, irmãos, tios, sobrinhas e avós. “Free again”, como confirmaram em uníssono. A mais velha tinha cursado uma bolsa de estudos nos Estados Unidos e casou-se com um colega americano intragável, que ela só descobriu depois de casada. Disse que o cara implicava com tudo, desde os sapatos que usava até do penteado mais moderninho. Era um “chato de galochas”, segundo ela. Abandonou o marido, no segundo mês do casamento e fugiu para a Califórnia: Los Ângeles, onde fez de tudo. Peripécias incríveis! Brinquei com ela: “Você, então, é uma devassa branca”. Elas riram muito, pediram outras e a mais nova começou a contar suas aventuras no Brasil. Primeiro saiu muito cedo da casa dos pais e foi morar em Santos, sozinha. “Ninguém para me dar ordens. Odeio ser comandada!”



Mas, encantada com um halterofilista, melhor, fisiculturista, rato de praia, que passava dia e noite na frente do espelho fazendo caras, bocas e músculos. É claro, durou muito pouco tempo o conluio. Separou-se, enquanto não tinham filhos porque o narciso era barra pesada: praia, espelho e cama dia e noite”. Virou “free-lancer”, segundo ela, até que a irmã Rafaella a convidou para uma viagem a Los Angeles. Juntou algum dinheiro e se mandou para a Califórnia.
Na verdade, só me contaram o que achavam que podiam ou deviam, mas, fiquei imaginando as duas free em Los Ângeles. Deve ter sido uma loucura!
Brinquei de novo com elas: “Então, conheci mais uma devassa branca”. E assim ficamos até a hora dos embarques, primeiro o delas, depois o meu, com diversas devassas, as brancas, minhas amigas da última hora e as Negras, minhas amigas de sempre.
Ciao,Guarulhos!

Roberto H. Brandão – dez/2009.

MARIANA QUEBROU O MURO COM O NARIZ

Numa bela tarde de julho lá se foram as três meninas até o posto calibrar os pneus das bikes, últimos modelos da Caloi. Arrastaram-se até o posto da esquina, bem pertinho,
e pediram a um dos frentistas para encher os pneus na calibragem certa, pois, elas mesmas, não sabiam! Tudo certo? Vamos dar uma volta no quarteirão porque lá no prédio não tem lugar pra nós: no salão de festas é impossível, tem portas e degraus pra todo lado. Na entrada, nem pensar, seria subir e descer umas mil vezes até cansar da paisagem compreendida entre uma grade e um muro que elas já conheciam há muitos anos. Não inspirou! Na garagem? É proibido, pois, pode arranhar os carros. No passeio? Talvez, mas correndo um risco enorme, pois, entre duas ruas de grande movimento, duas subidonas, teriam de andar um quarteirão desviando dos pedestres trabalhadores na região, como os funcionários da Boníssima, os frentistas do Posto Cabral no caminho de casa, os esportistas voltando do Clube Militar e os funcionários do Ministério da Agricultura que sempre preferem andar no passeio do lado de cá à trilha no inóspito caminho ao lado do muro da repartição pública, enfim, era também um caminho árduo e sem graça.
“Isabela e Raíssa , vamos encostar as bicicletas!” Falou Mariana. E as três, comportadamente, voltaram pra casa e entraram com as bicicletas pela garagem. “Waldir, ô Waldir, abre o portão da garagem, por favor!” Gritaram elas.
Sempre solícito, o porteiro Waldir abriu o portão e lembrou que certa vez, o Alberto Levy, morador do apartamento 401 desceu a rampa da garagem com o carro sem freios, arrancou o portão e foi bater direto no muro lá em frente. Na época, ainda não tinha sido instalada a central de gás no final da rampa. Meno male! O carro bateu com tanta força que furou o muro e o prédio recebeu uma intimação do vizinho, no dia seguinte, solicitando a reparação imediata do estrago. O Dadá conferiu tudo e, preocupado, ajudou o sr. José Resende, então síndico, a providenciar a reconstrução do muro sem ônus para o velho vizinho. Acidentes acontecem!
Mas, a preocupação do Waldir era procedente, pois, naquela rampa íngreme, se faltassem os freios nas bicicletas das meninas seria tiro e queda.
E não deu outra, a Isabela e a Raíssa desceram primeiro, juntas, raspando no muro e saíram ilesas, mas, a Mariana calculou mal a distância e na curva bateu no muro. Uma tremenda trombada que não furou o muro como o Alberto, mas, quebrou o nariz e esfolou o rosto da menina. Os freios falharam, disse ela.
O Waldir coçou a cabeça e providenciou a ambulância para levar a Mariana ao Pronto Socorro. Nada de grave, uns pontinhos aqui, outros ali e ela já estava linda de novo.
Quando o Braga chegou, depois que fechou o “banco”, soube do movimento no prédio e foi direto para a garrafa diária de vinho na varanda sendo informado do ocorrido pela Sônia, no caminho do tugúrio. Ela estava na varanda acompanhando toda a confusão e viu, até, quando o Konisbergue, ou o espírito dele, foi correndo pra acudir a neta e ver se o Impala preto tinha sido atingido.
E na cadeira preferida, dona. Santa continuou sorrindo para o além, quando a paz voltou ao Edifício Jacques Saul.

Roberto H. Brandão – julho/2009

MARINA DAS DORES

Sempre perto de nós, de mim e da Lúcia, a tia Marina tem sido nossa step-mother
a vida toda. Com amor e carinho, tomo a liberdade de escrever uma brincadeirinha sobre ela. Na verdade, nunca conheci uma pessoa tão alegre e dolorida quanto ela. Não sei como foi na sua época dourada de campeã mineira de tênis pelo Minas Tênis Clube, que honrou tanto o nome. Também não me recordo bem desta época, pois era muito pequeno e morávamos em São Paulo. longe dos esportes mineiros.
Nossos encontros mais intensos foram nas temporadas em que o papai e a mamãe se mudaram para os Estados Unidos (1947 e 1951) quando então ela assumiu as funções de mãe, tia, avó, etcétera e tal, em tempo integral. Bons tempos aqueles!
Lembro-me muito de que, entre uma dor e outra, ela nos vestia com os uniformes do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, para onde ela nos levava de bonde toda manhã e buscava na hora do almoço.
Belo Horizonte era muito pequena e provinciana, no entanto, os bondes nos conduziam com segurança e muita precisão nos horários. Para irmos ao Grupo, na Av. Paraúna, pegávamos os amarelos na Rua Ceará que seguiam até a Praça Diogo de Vasconcelos, ponto final e retorno. Apesar da famosa padaria Savassi já estar lá, instalada, ainda conservava o nome original.
Era uma infância muito feliz na casa da vovó Augusta. O almoço, uma delícia que a cozinheira/arrumadeira/faz tudo Maria, novinha no primeiro emprego, preparava com pratos gostosos e saudáveis, pois a vovó comprava do Joaquim as verduras e legumes fresquinhos trazidos no lombo de uma velha mula.
Desdentado e coxo, Seu Joaquim subia e descia as ladeiras da cidade com suas preciosidades, cultivadas na própria horta. Ele gostava muito da vovó e sua sinceridade era pública e notória. Um dia ela lhe perguntou como ia a mulher dele, se ela estava boa e ele respondeu sem cerimônia: “Ela tá boa, dona Augusta e bem menos escangaiada que a senhora.”
Na casa da vovó moravam o tio Zé e o tio Tonico, filhos solteirões, na época beirando os cinquenta anos. Eles cuidavam do quintal e mantinham, cada um o seu, belíssimos orquidários. Na casa dela a massa do macarrão era feita em casa, os molhos eram preparados com tomates e pimentões colhidos na hora, na horta que ela mesma cultivava. Um verdadeiro luxo!
Tinha de tudo a dois passos da cozinha, onde um antigo fogão de lenha mantinha uma enorme criação de escorpiões e um forno onde se assavam os pãezinhos para o café da manhã e o lanche. O quintal era uma beleza! Ao fundo, havia uma touceira de bananas, alguns pés de variadas laranjas, dois limoeiros, uma caramboleira, um pé de fruta de conde, mangueiras de diversas espécies e um abacateiro que fazia sombra no quarador de roupas ,
Numa coluna, ao lado do fogão, ficava o poleiro do Lôro. Papagaio esperto que falava, entre outras coisas, o próprio nome, ensinado pela vovó, sua dona: bom-dia, boa-tarde e boa-noite faziam parte do vocabulário dele e nas horas certas. Sabia, também, muitos palavrões: merda, fio da puta e pqp. Ele era muito esperto e comia frutas e pão molhado que a vovó lhe dava toda manhã. Ela só parou de alimentá-lo quando pegou uma pneumonia brava que a deixou na cama até os setenta e cinco anos.
Lembro-me de que eu sentava aos pés da cama dela para ouvir suas histórias e, tipo Brandão, ficava batendo os pés no estrado. Era quando ela, cabelinho cinza puxado para trás me olhava com ternura e pedia: “Não bata com os pezinhos na cama não, filhinho, porque incomoda a vovó, viu?”
E ali, na casa da vovó, passamos dois belos períodos com a tia Marina, o tio Zé e o tio Tonico. Sobre estes dois, vale registrar: tio Zé, atleticano doente, sofria de úlcera de estômago e vivia de mal humor. Era magrinho e, sempre, com uma caixinha de bicarbonato no bolso. Saía bem cedo para trabalhar no DER – Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais. Já o tio Tonico, mais novo e fortão, capitão-dentista da Força Pública, americano por amor e convicção, havia jogado como back no scretch do América Futebol Clube. Ainda como controvérsia mas sem resultados práticos, o tio Tonico era espírita e o tio Zé, um ateu radical. No quesito religião os dois não se entendiam, mas se respeitavam muito. Quando havia sessão espírita lá em casa, toda quarta-feira, o tio Zé só aparecia depois das dez, para não se incomodar com as velas acesas, os espíritos baixando e todo mundo rezando à mesa da sala de jantar.
Já a Maria, cozinheira de forno e fogão, gostava de fazer uma fezinha no jogo do bicho. Jogava todo dia e ficava perguntando se alguém tinha sonhado com alguma coisa e, quando alguém contava o sonho, ela fazia suas deduções. Um dia lhe contei que tinha sonhado que estava no jardim, quando vi um grilo verde pulando. Ela logo deduziu: “Isso dá borboleta, Bebeto. Sonhar com grilo tem que jogar na borboleta”. Acreditei naquela loucura e pedi uma moeda de um mil reis ao tio Tonico, para a Maria jogar. E não é que deu borboleta? Ganhamos cinco mil réis e dali prá frente, todo dia, tinha que contar a ela os meus sonhos. Por azar, nunca mais ganhamos!
Os meus amigos e vizinhos, Wilton e o irmão Eduardo, Décio Freire (Destão Cabeçudo), Clermont Gosling, Rodrigo e Petrônio Zica, Eduardo e Júlio Brasil, passavam lá em casa todo sábado, para jogarmos uma pelada na Avenida Paraúna, hoje Getúlio Vargas, onde havia um canteirão grande de grama no meio, entre rua Aimorés e Bernardo Guimarães.
Ainda jogávamos bente-altas, finca, rolávamos nossos carrinhos de rolimã pelos passeios esburacados, trepávamos em árvores para chupar tamarindo- havia duas enormes, no quarteirão em frente de casa -, soltávamos papagaios, que nós mesmos fazíamos. Enfim, era uma infância saudável e feliz.
Voltemos a “Marina das Dores”, que descia a Rua Marquesa de Alorna para ir à casa da vovó atravessando por um lote vago na Rua do Ouro, ela ainda pulava uma pinguela na Avenida do Contorno e pegava a Rua Bernardo Guimarães até o número 305. A visita diária era para cuidar do Bebeto e da Lucinha, sobrinhos queridos.
O telefone da casa da vovó, coisa raríssima na época, me lembro, era 2-1188.
Com um pulo na história, volto a me lembrar da tia Marina, já casada com o dentista-violonista e super bem humorado Nelson Emiliano Orsini, vulgarmente conhecido como “nirsinho de brito, atleticano, violeiro, cachaceiro futebol clube”. Apelido que ele mesmo criou quando se apresentava para alguém.
Tio Nelsinho era uma pessoa especial e se dedicou à tia Marina com o maior carinho, cuidando das suas diversas dores a vida toda. Para ela, era um verdadeiro anjo da guarda. Ele também gostava de um churrasco caprichado, uma cachacinha e uma cerveja gelada. Companheiro de Noel Rosa e Ari Barroso, bem como, de toda uma geração de músicos da Rádio Nacional, da Rádio Inconfidência e adjacências, acompanhou grandes cantores como Francisco Alves e tantos outros. Ele era especial mesmo!
Muitos anos depois, tendo morado em São Paulo por dez anos, voltamos para Belo Horizonte e, por um período, fui morar com o tio Zé, na Rua das Camélias, na Nova Suíça. Tio Tonico morrera prematuramente aos sessenta anos, de um enfarte fulminante. Assim, tio Zé vendeu a casa da vovó e construiu uma casinha pra ele, projeto próprio, bem simples, com um quintal grande cheio de passarinhos, orquidário
caprichado e uns vira-latas pra latir muito e não morder.
Aos domingos, ele saía cedinho para ir ao Mercado Central para fazer as compras da semana. Lembro-me bem dele naquelas manhãs, olhos azuis da cor do mar, sorriso mais solto depois que se livrou da úlcera, pernas tortas, descendo a Rua das Camélias com duas sacolas fechadas e enroladas debaixo dos braços, de sandálias de dedo e de bermudas, para pegar o lotação na Rua Desembargador Barcelos. Logo que chegava, sacolas cheias, Maria ia desembalando as compras e ele pegava uma cerveja e me chamava: “Vem cá Bebeto, vamos esperar o Nelson e a Marina.” Sentávamo-nos na varanda onde havia um jogo de cadeiras e mesa de ferro, com tampo de vidro, a cerveja gelada e uma brisa agradável.
Logo, soava a buzina – pan,paranpan,panpan – e surgia o Studbaker preto dobrando a esquina. Mais cervejas, um almoço caprichado com arroz, feijão, nhoque, capeleti com molho de frango, goiabada e doce de leite com queijo, café esturricando de quente e muita felicidade. E a “Marina das Dores” sorrindo, feliz naquele domingo quente dos anos 1960.
Roberto H. Brandão
Março/2010

DAS DORES E DOS TOMBOS

Acostumada, como jogadora premiada de tênis a cair espetacularmente saltando atrás das bolas difíceis de suas contendoras, tia Marina caiu tanto na quadra que acabou se acostumando, também, com os tombos involuntários.
E assim, foi colecionando uma porção deles. Já deve estar no 5.837º. cinco milésimos, oitocentésimo, trigésimo sétimo tombo. Será que é assim que se escreve? É tanto tombo que o número vai ficando cada vez mais difícil de se escrever.
Outro dia mesmo, quando cheguei lá no domingo de manhã, me contou que havia caído e tinha tido uma luxação muito dolorida no ombro direito. Coitada, pensei, mas, logo em seguida me lembrei do número recorde já registrado e nem dei bola. É só mais um tombinho!.
É claro que dói, incomoda, fica desconfortável em algumas posições, mas a Marina das Dores e dos Tombos tira de letra.
Acho que este negócio de cair é mal de família, de família Hermeto. Mamãe também caía muito, tanto que no pior dos tombos ela quebrou a base do fêmur. E com 92 anos, não foi fácil. Magistralmente operada pelo Professor Marcelo Magalhães, que a colocou de novo na lida, sem muletas, bengala e nem nada. Também muito bem humorada, este um bem de família das Hermeto, ela ria muito porque o Dr. Marcelo havia colocado nela um parafusão, que ela apelidou de Dorival, três parafusinhos, que ela chamou de Marina, Henrique e Iara, seus bisnetos queridos e mais uma placa para firmá-los, que ela chamou de Lúcia, base segura da vida de todos.
Voltando a Marina dos Tombos, sempre muito expansiva, que me contou sobre um tombo fantástico e internacional, destes que devem ser registrados nos anais da família.
Ela me contou que foram conhecer um restaurante em Santiago do Chile, onde ela, tio Nelsinho e tio Zé, foram anfitrionados por um nativo que se apaixonou por eles e resolveu mostrar-lhes a maravilhosa capital chilena
No primeiro dia ele programou levá-los para um restaurante com as seguintes palavras: “Hoy, nosotros vamos a uno de los mejores restaurantes de Chile. Vamos conocerlo.”
Ela, na frente, puxando os turistas, chegou com o anfitrião à porta do famoso restaurante e ele, cauteloso, parou a fila e disse: Oiga, despacio porque hay uma escalera en la entrada.” Marina nem ouviu, abriu a porta e entrou. Pumba! Entrou direto e despencou restaurante adentro até cair sentada no colo de um dos fregueses. O rapaz, assustado, perguntou: “Lo que pasa señora?” E ela, muito sem graça, respondeu: “Não é nada senhor, é só mais um dos meus gloriosos tombos. Desculpe-me, por favor.”
Tio Nelsinho, tio Zé e o anfitrião vinham correndo para socorrê-la, mas ela já estava plenamente recuperada ao lado do surpreso freguês, já se desculpando!
Coisas da Marina das Dores e dos Tombos.

Roberto H. Brandão
Abril/2010.

JANTAR EM PETRÓPOLIS

Pela manhã, acordamos dispostos a uma longa viagem de BH para o Rio, a bordo do possante Mercury 1950, verde escuro, do papai. Na verdade, àquela época, a viagem era mesmo longa, pois a estrada, BR-3, não era totalmente asfaltada e, com isto, demorava-se muito mais para percorrer os 450 km. A radiosa manhã começou com o preparo do carrão no posto de gasolina da rua Aimorés. Encha o tanque, comandava o papai. Verifique os pneus, coloque água no radiador e veja o nível do óleo do motor. Carro pronto, fomos à casa do vovô Pedrinho para buscar tio Aureliano e sua mulher Naná, já com as malas prontas, na calçada, só esperando o Helvécio. O Aureliano usava um guarda-pó sobre o bem cortado terno de casimira inglesa e a Naná, um vestido mais simples, próprio para enfrentar aquela grande jornada.
Papai, minucioso, conferiu todo o serviço novamente e partimos da rua Pium-í nº 1972 para o Rio de Janeiro. Na saída, esquina da av. do Contorno com BR-3, observamos que o mato, na beira da estrada, estava bem alto e não permitia a visualização da única placa indicativa da saída para o Rio. Fomos às cegas e, por sorte, acertamos. Bom início.
Os primeiros quilômetros eram asfaltados e muito confortáveis, seguindo até o famoso Viaduto da Inconfidência, novinho, uma maravilha arquitetônica que, ainda hoje, apelidado “viaduto das almas”avança sobre um vale a mais de trinta metros de altura. Uma beleza! À última visão de um rio conhecido e a primeira provocação do Aureliano: “Naná, aquele é o seu rio...” “Por que, Aureliano?” perguntou ela, inocente. “Ele é o rio das Velhas!” - Há, há, há!
Ela não se abalou, pois, acredito que não tenha escutado.
No Mercury, muito confortável, iam o papai, como motorista e o Aureliano, na boléia, Naná e eu, no banco de trás. A conversa era muito animada na frente, pois o tio ia fornecendo uma descrição de todo o trajeto, comentava sobre o tempo, apontava monumentos e os descrevia: “Olhe que bonito cafezal, Helvécio! Esta região tem excelentes fazendas em plena produção. Naná, repare nas vaquinhas, pastando ali.” Ao longe, uma grande manada de vacas pretas e brancas, ruminava no pasto seco e agreste. “Aquele é o profeta Abdias,” na passagem por Congonhas. Ali, contou-nos a trágica história do Aleijadinho e suas obras, esculpidas magistralmente por um deficiente físico, negro, paupérrimo e faminto. Ele sabia de tudo e eu, menino, ouvia admirado aquelas manifestações de grande conhecimento, cultuada sabedoria e irônico humor. Coisa de gênio! Como se não bastasse, papai comentou que o Aureliano era formado em Medicina, em Farmácia e em Direito e falava, além do inglês e do francês, fluentes, também o alemão, e que tinha feito a apresentação de um trabalho científico na Academia Brasileira de Medicina no idioma germânico. E por exclusivo diletantismo. Diante desses comentários, ele sorria, vaidosamente feliz.
Não tivemos pneus furados, muito comum naquelas estradas esburacadas e poeirentas, nem qualquer avaria mecânica, também fáceis de acontecer, como entupimento do carburador, furo do radiador, vazamento de mangueiras, super aquecimento, entre outras encrencas.
A viagem foi, realmente, muito tranquila. Naquela época, as estradas chegavam às cidades e obrigavam os viajantes a passarem por dentro delas, literalmente. A ligação entre a chegada e a saída era a rua/avenida principal, que ia rasgando a cidade, atravessava a praça central, geralmente, em frente à Prefeitura e ia se afastando até os bairros mais distantes onde entrava, novamente, na rodovia. Era sempre assim. E, em Juiz de Fora, não fora diferente. Já uma cidade de porte médio e, portanto, sem aquela facilidade de travessia, possuindo diversos cruzamentos e nenhuma sinalização que nos conduzisse ao ponto de saída. Assim, resolvemos indagar ao primeiro habitante disponível que, encostado à sombra de uma árvore, ouviu atentamente. Aureliano perguntou: “Por favor senhor, onde é a saída para o Rio?” Na sua preguiça e simplicidade, o juiz-forano retrucou: “Ah, o senhor vai para o Rio?” Aureliano, irritadíssimo com a pergunta, muito vermelho, com a fala trêmula e quase babando de raiva lhe disse, dedo em riste: “Não, meu senhor, eu vou para a China!!!” E completou: “Vamos, Helvécio, ande, esse pobre coitado não sabe de nada.”
Vencemos as ruas e esquinas de Juiz de Fora sem mais perguntas, pois o homem estava possesso. Com alguma dificuldade, chegamos à estrada que, dali para frente, se chamava Rodovia União Indústria. Uma beleza de muitas curvas, viadutos e pontes, totalmente asfaltada até o Rio de Janeiro. Na altura de Petrópolis, por volta das seis da tarde, o Aureliano ordenou: “Vamos passar na casa de Santiago, pois quero cumprimentá-lo.” Referia-se à casa de seu genro, Francisco Clementino de Santiago Dantas, casado com a filha Edimê. Papai prontamente atendeu, pois seria uma honra para nós, conhecer o Primeiro Ministro do Governo parlamentarista brasileiro. E foi o máximo!
Como um mestre, Aureliano conduziu-nos pelas ruas, alamedas e canais da linda cidade e chegamos a uma enorme mansão clássica, arquitetura inglesa do século dezenove, com enorme jardim de acesso à porta, emoldurada por quatro colunas brancas num átrio. Soamos a campainha e fomos recebidos pelo mordomo, vestido num impecável terno preto, lenço branco no bolso. A recepção foi muito amistosa e formal. Afinal, não havíamos avisado sobre a inesperada visita. “D. Edimê está repousando e o Ministro está no Rio. Talvez venha para o jantar.”
Aureliano, cerimoniosamente, pediu que a avisasse que estávamos de passagem, ele, a mãe dela, com o primo Helvécio e o filho Roberto, de Belo Horizonte. O mordomo retirou-se, educadamente, e, após uns poucos minutos, voltou anunciando: “D. Edimê vai descer em seguida e pediu-me para convidá-los para o jantar, que será servido às sete horas. Podem esperar na biblioteca, se quiserem.” Fiquei boquiaberto. Nunca tinha visto uma biblioteca daquele tamanho. Aliás, nunca tinha visto biblioteca nenhuma, a não ser numa rápida visita aos livros guardados do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, para buscar algum escrito sobre plantas, pois iria fazer uma composição para o Dia da Árvore. Já era um arremedo de biblioteca, aquela coleção de livros.
Em meia hora, Edimê apareceu, muito arrumada e saudou os pais, com cerimônia, cumprimentou o primo e o filho e convidou-nos para jantar, dizendo: “Santiago avisou-me que não poderá vir do Rio, pediu-me para apresentar-lhes desculpas pela ausência e recomendou-me que o convidasse, papai, para fazer as honras da casa, sentando-se à cabeceira, no jantar!” Aureliano, honrado e obediente, dirigiu-se à mesa posta com toda pompa e circunstância. Tudo era surpresa para mim, pois nunca tinha visto uma mesa com pratos, talheres e diversos copos dispostos, milimétricamente, nos seus lugares, com enormes guardanapos de linho branco, chuleados e embainhados sobre a lindíssima toalha portuguesa do século XIX. Um luxo! Sentamo-nos nos lugares indicados e fomos servidos por um elegante maitre de librè, o mesmo mordomo, já paramentado para a nova função. Uma criada, também uniformizada, obedecia às ordens dele com precisão e servia os convidados de acordo com uma rotina pré-ensaiada, onde não faltava nenhum detalhe. Aureliano fez a prova do vinho com precisão e elegância e fartamo-nos de educação e finesse durante todo o tempo. Foi uma experiência e tanto! Após o café, tomei o primeiro licor da minha vida, um Drambuie, “derivado do Scotch Whisky”, comentou o tio sábio.
Aureliano e Naná aceitaram o convite para pousar na mansão e eu e papai retomamos nossa viagem para o Rio, por volta das nove da noite. E que noite!

Roberto Hermeto Brandão – agosto/2006