domingo, 22 de maio de 2016

RABBIT HUNTING



Num dia de janeiro de 1977, partimos para uma viagem curiosa e marcante a Lund, na Suécia, com escalas em Paris, Hanover, Kopenhagen e Malmo. Éramos dois brasileiros, o Jarjour e eu, mais o laticinista nascido em Lyon, na França, o Barbier.
Arrumamos nossas malas com roupas bem pesadas, pois sabíamos do frio naquela região do planeta. As vestes tropicais seriam incapazes de agasalhar naquelas temperaturas sempre abaixo de zero. Assim, cachecol inglês, blusa de lã, carinhosamente tricotada pela mamãe, meias mais grossas, calça de sarja grossa, luvas de couro americanas, sem forro, e mais umas bobagens pretensiosamente aquecedoras. Como eu, meus companheiros também estavam despreparados. Partimos, então, com todo o ânimo e a honrosa missão de comprar uma empacotadeira, para lançamento do Leite BIGem Belo Horizonte, pioneiro no país, com os famosos “leites de caixinha”.
A primeira classe da Varig era realmente um luxo. Champagnee caviar logo no embarque; um lauto jantar quente com sopa de aspargos, lagosta à belle meuniére, acompanhada de um maravilhoso riesling alemão, rigorosamente a 11º C; cassata e expressos, licores, bombons, etc. E um sono tranquilo, em seguida, para atravessar o Atlântico em paz.
Com o avião vazio, o Jarjour pediu ao Barbier, ao seu lado, que trocasse de lugar, pois ele preferia dormir sem o desagradável cheiro das meias do francês, que já tinha chutado a botina para debaixo da poltrona.
Depois das escalas, sem qualquer atropelo, desembarcamos na belíssima Kopenhagen, cuja temperatura era de –10º C. Empacotamo-nos com os casaquinhos mineiros e iniciamos o primeiro dos quinze dias gelados da missão. Para minha sorte, o Ronald havia me emprestado um casacão de lã verde militar, que me rendeu o apelido de Her General.
Passamos o dia conhecendo um pouco da cidade, onde nos informaram que deveríamos tomar um ferry-boat com destino a Malmo, na Suécia, do outro lado do Mar Báltico e, de lá, pegar um trem até a pequena cidade de Lund, bem ao sul, onde ficava a fábrica e os escritórios da Tetra-Pak.
À custa de muita vodca, atravessamos o mar gelado e desembarcamos numa estação ferroviária, onde um velho trem a vapor aguardava para levar os trabalhadores para casa, depois de um longo dia de trabalho no país vizinho. Parecia um daqueles trens-cargueiros com passageiros de olhares curiosos e cansados, barba meio crescida e semblante abatido, carregando umas sacolinhas que deviam ser suas marmitas. Uns liam jornais amarelados, outros jogavam com pedrinhas plásticas um jogo diferente, desconhecido para nós; alguns ficavam recostados nas janelas, tirando uma soneca, enfim, um legítimo trem suburbano com sua exótica população. Nossos companheiros de viagem nos contaram que muitos suecos fazem diariamente esse trajeto, pois trabalham na Dinamarca e moram na Suécia. Sentimo-nos  totalmente avulsos no meio daquela gente mas, com bastante fair-play,  tentamos nos misturar como se fizéssemos parte daquela turma de trabalhadores fatigados. A viagem foi curta, uma hora e meia, e chegamos em Lund. Na estação, já nos aguardavam o presidente e o vice da Tetra-Pak, que nos levaram, num carro só, pois estavam praticando o transporte solidário, em pleno início da crise do petróleo. Apertamo-nos para caber na van e rumamos para o Hotel Lundia. O presidente nos deu uns minutos para descarregar a bagagem e descemos para jantar no restaurante do hotel. Comidas diferentes regadas com bom vinho francês e um convite inusitado: no dia seguinte, um sábado, ele havia combinado com os amigos para uma caçada aos coelhos e, gentilmente, nos convidava para acompanhá-lo. Espertos, Jarjour e eu agradecemos, desculpando-nos por não termos as roupas apropriadas, mas o Barbier, corajosamente, aceitou.  
Na manhã seguinte, tomávamos o café, quando o Barbier apareceu para narrar a caçada. Parecia um pinguim. Depois de um whisky duplo puro, contou-nos que o presidente e os amigos haviam chegado às cinco da manhã para buscá-lo, vestidos com uniforme de inverno sueco. Calça justa sobre ceroula de lã, botas até o joelho, blusa de tricô com gola rolê, tapa orelhas, óculos de neve, gorro russo de pele, um over-coataté o calcanhar, enfim, armas e munições para exterminar um exército de coelhos. E ele, coitado, com a roupinha de Minas: camisa de algodão, suéter e meias normais, sapatos comuns, luvas finas, enfim, um sério candidato a uma pneumonia tripla. Com pena, emprestaram-lhe uma capa, entregaram-lhe a carabina e se embrenharam no mato. Depois de um fôlego e um segundo cow-boy, considerou que tinha sido um péssimo programa, pois todos haviam se escondido numa moita - eram quatro -, onde ficaram aguardando os coelhos. Ele embrulhou-se na capa cobrindo até a cabeça, escondendo o rosto e as orelhas e sem enxergar nada, pois não tinha os óculos apropriados.
Uma tragédia! Com os pés e as mãos congelados, tremendo, fizeram um plantão durante umas duas horas - ele calculava -, pois havia perdido a noção do tempo. Disse ainda que, apoiado na espingarda enorme, dormiu e só acordou com um estrondo quando todos dispararam ao mesmo tempo. Havia aparecido um único exemplar do inocente pequeno mamífero leporídeo, que foi estraçalhado pelo tiroteio ao pé de uma árvore.
Havia acabado a caçada a – 45º. C.
(Foto Google)
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS

“A verdadeira arte de viajar... A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa, como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo...” Mario Quintana