sábado, 16 de julho de 2016

MARINA DAS DORES

Sempre perto de nós, de mim e da Lúcia, a tia Marina tem sido nossa step-mother 
a vida toda. Com amor e carinho, tomo a liberdade de escrever uma brincadeirinha sobre ela. Na verdade, nunca conheci uma pessoa tão alegre e dolorida quanto ela. Não sei como foi na sua época dourada de campeã mineira de tênis pelo Minas Tênis Clube, que honrou tanto o nome. Também não me recordo bem desta época, pois era muito pequeno e morávamos em São Paulo, longe dos esportes mineiros.
Nossos encontros mais intensos foram nas temporadas em que o papai e a mamãe se mudaram para os Estados Unidos (1947 e 1951) quando então ela assumiu as funções de mãe, tia, avó, etcétera e tal, em tempo integral. Bons tempos aqueles!
Lembro-me muito de que, entre uma dor e outra, ela nos vestia com os uniformes do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, para onde ela nos levava de bonde toda manhã e buscava na hora do almoço.
Belo Horizonte era muito pequena e provinciana, no entanto, os bondes nos conduziam com segurança e muita precisão nos horários. Para irmos ao Grupo, na Av. Paraúna, pegávamos os amarelos na Rua Ceará, que seguiam até a Praça Diogo de Vasconcelos, ponto final e retorno. Apesar da famosa padaria Savassi já estar lá, instalada, ainda conservava o nome original.
Era uma infância muito feliz na casa da vovó Augusta. O almoço, uma delícia que a cozinheira/arrumadeira/faz tudo, Maria, novinha no primeiro emprego, preparava com pratos gostosos e saudáveis, pois a vovó comprava do Joaquim as verduras e legumes fresquinhos trazidos no lombo de uma velha mula. 
Desdentado e coxo, Seu Joaquim subia e descia as ladeiras da cidade com suas preciosidades, cultivadas na própria horta. Ele gostava muito da vovó e sua sinceridade era pública e notória. Um dia ela lhe perguntou como ia a mulher dele, se ela estava boa e ele respondeu sem cerimônia: “Ela tá boa, dona Augusta, e bem menos escangaiada que a senhora.”
Na casa da vovó moravam o tio Zé e o tio Tonico, filhos solteirões, na época beirando os cinquenta anos. Eles cuidavam do quintal e mantinham, cada um o seu, belíssimos orquidários. A massa do macarrão era feita em casa, os molhos eram preparados com tomates e pimentões colhidos na hora, na horta que ela mesma cultivava. Um verdadeiro luxo!
Tinha de tudo a dois passos da cozinha, onde um antigo fogão de lenha mantinha uma enorme criação de escorpiões e um forno onde se assavam os pãezinhos para o café da manhã e o lanche. O quintal era uma beleza! Ao fundo, havia uma touceira de bananas, alguns pés de variadas laranjas, dois limoeiros, uma caramboleira, um pé de fruta de conde, mangueiras de diversas espécies e um abacateiro que fazia sombra no quarador de roupas ,
Numa coluna, ao lado do fogão, ficava o poleiro do Lôro. Papagaio esperto que falava, entre outras coisas, o próprio nome, ensinado pela vovó, sua dona: bom-dia, boa-tarde e boa-noite faziam parte do vocabulário dele e nas horas certas. Sabia, também, muitos palavrões: merda, fio da puta e pqp. Ele era muito esperto e comia frutas e pão molhado que a vovó lhe dava toda manhã. Ela só parou de alimentá-lo quando pegou uma pneumonia brava que a deixou na cama até os setenta e cinco anos.
Lembro-me de que eu me sentava aos pés da cama dela para ouvir suas histórias e, tipo Brandão, ficava batendo os pés no estrado. Era quando ela, cabelinho cinza puxado para trás me olhava com ternura e pedia: “Não bata com os pezinhos na cama não, filhinho, porque incomoda a vovó, viu?” 
E ali, na casa da vovó, passamos dois belos períodos com a tia Marina, o tio Zé e o tio Tonico. Sobre estes dois, vale registrar: tio Zé, atleticano doente, sofria de úlcera de estômago e vivia de mau humor. Era magrinho e, sempre, com uma caixinha de bicarbonato no bolso. Saía bem cedo para trabalhar no DER – Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais. Já o tio Tonico, mais novo e fortão, capitão-dentista da Força Pública, americano por amor e convicção, havia jogado como back no scretch do América Futebol Clube. Ainda como controvérsia, mas sem resultados práticos, o tio Tonico era espírita e o tio Zé, um ateu radical. No quesito religião, os dois não se entendiam, mas se respeitavam muito. Quando havia sessão espírita lá em casa-  toda quarta-feira -, o tio Zé só aparecia depois das dez, para não se incomodar com as velas acesas, os espíritos baixando e todo mundo rezando à mesa da sala de jantar.
Já a Maria, cozinheira de forno e fogão, gostava de fazer uma fezinha no jogo do bicho. Jogava todo dia e ficava perguntando se alguém tinha sonhado com alguma coisa e, quando alguém contava o sonho, ela fazia suas deduções. Um dia lhe contei que tinha sonhado que estava no jardim, quando vi um grilo verde pulando. Ela logo deduziu: “Isso dá borboleta, Bebeto. Sonhar com grilo tem que jogar na borboleta”. Acreditei naquela loucura e pedi uma moeda de um mil réis ao tio Tonico, para a Maria jogar. E não é que deu borboleta! Ganhamos cinco mil réis e, dali pra frente, todo dia tinha que contar a ela os meus sonhos. Por azar, nunca mais ganhamos,
Os meus amigos e vizinhos, Wilton e o irmão Eduardo, Décio Freire, o Destão Cabeçudo; Clermont Gosling, Rodrigo e Petrônio Zica, Eduardo e Júlio Brasil passavam lá em casa todo sábado para jogarmos uma pelada na Avenida Paraúna, hoje Getúlio Vargas, onde havia um canteirão de grama no meio, entre rua Aimorés e Bernardo Guimarães.
Ainda jogávamos bente-altas e finca, rolávamos nossos carrinhos de rolimã pelos passeios esburacados, trepávamos em árvores para chupar tamarindo - havia dois pés enormes, no quarteirão em frente de casa -, soltávamos papagaios, que nós mesmos fazíamos. Enfim, era uma infância saudável e feliz.
Voltemos a “Marina das Dores”, que descia a Rua Marquesa de Alorna para ir à casa da vovó, atravessando por um lote vago na Rua do Ouro. Ela ainda pulava uma pinguela na Avenida do Contorno e pegava a Rua Bernardo Guimarães até o número 305. A visita diária era para cuidar do Bebeto e da Lucinha, sobrinhos queridos. 
O telefone da casa da vovó, coisa raríssima na época, me lembro, era 2-1188.
Com um pulo na história, volto a me lembrar da tia Marina, já casada com o dentista-violonista e super bem humorado Nelson Emiliano Orsini, vulgarmente conhecido como “Nirsinho de Brito, atleticano, violeiro, cachaceiro futebol clube”. Apelido que ele mesmo criou quando se apresentava para alguém. 
Tio Nelsinho era uma pessoa especial e se dedicou à tia Marina com o maior carinho, cuidando das suas diversas dores a vida toda. Para ela, era um verdadeiro anjo da guarda. Ele também gostava de um churrasco caprichado, uma cachacinha e uma cerveja gelada. Companheiro de Noel Rosa e Ari Barroso, bem como de toda uma geração de músicos da Rádio Nacional, da Rádio Inconfidência e adjacências, acompanhou grandes cantores como Francisco Alves e tantos outros. Ele era especial mesmo!
Muitos anos depois, tendo morado em São Paulo por dez anos, voltamos para Belo Horizonte e por um período fui morar com o tio Zé, na Rua das Camélias, na Nova Suíça. Tio Tonico morrera prematuramente aos sessenta anos, de um enfarte fulminante. Assim, tio Zé vendeu a casa da vovó e construiu uma casinha pra ele. Projeto próprio, bem simples, com um quintal grande cheio de passarinhos, orquidário caprichado e uns vira-latas pra latir muito e não morder. 
Aos domingos, ele saía cedinho para ir ao Mercado Central fazer as compras da semana. Lembro-me bem dele naquelas manhãs, olhos azuis da cor do mar, sorriso mais solto depois que se livrou da úlcera, pernas tortas, descendo a Rua das Camélias com duas sacolas fechadas e enroladas debaixo dos braços, de sandálias de dedo e de bermudas, para pegar o lotação na Rua Desembargador Barcelos. Logo que chegava, sacolas cheias, Maria ia desembalando as compras e ele pegava uma cerveja e me chamava: “Vem cá, Bebeto, vamos esperar o Nelson e a Marina.” Sentávamo-nos na varanda onde havia um jogo de cadeiras e mesa de ferro, com tampo de vidro, a cerveja gelada e uma brisa agradável. 
Logo, soava a buzina – pan,paranpan,panpan – e surgia o Studbaker preto dobrando a esquina. Mais cervejas, um almoço caprichado com arroz, feijão, nhoque, capeleti com molho de frango, goiabada e doce de leite com queijo, café esturricando de quente e muita felicidade. E a “Marina das Dores” sorrindo, feliz naqueles domingos quentes dos anos 1960.

Republico esta crônica, escrita em dezembro de 1960 e publicada aqui no blog em 2010, em homenagem à minha querida tia Marina, que faleceu no domingo passado, dia 10 de julho, aos 99 anos e quatro meses. de mãos dadas comigo e com o meu primo Maurício, também sobrinho dela. Ela fechou definitivamente os olhinhos como um passarinho e manteve aquele sorriso alegre de uma pessoa feliz.
Vai com Deus, querida!

MISSA DE SÉTIMO-DIA NESTE DOMINGO, 17 DE JULHO, ÀS 19:30, NA IGREJA DE NOSSA SENHORA RAINHA, NO BELVEDERE.

FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
“É preciso fazer o mundo inteiro cantar. A música é tão útil

como o pão e a água.” Heitor Villa-Lobos