Em julho de 2008,
foi-se a nossa deslumbrante bailarina Cyd Charisse, que enfeitiçou as matinês e soirèes dos cinemas Rio e Majestic, na
gloriosa década de 50, em
São Paulo. Suas pernas, verdadeiros monumentos
à beleza feminina, eram tão perfeitas que haviam merecido um seguro de milhões
de dólares para garantia e preservação de sua eficiência no balé e manutenção
de sua perfeição na estética.
Chamo-a de nossa
porque ela pertenceu a todos nós, apaixonados e cultuadores da beleza distante
de suas pernas. Seus pares, Fred Astaire e Gene Kelly, que a solicitavam para
palcos no mundo inteiro, eram o alvo do nosso maior ciúme, quando tocavam
aquelas pernas para embalá-las em passos acrobáticos e perfeitos até pousarem
no chão, magistralmente.
Hollywood produzia
filmes para o entretenimento com muita música e dança que embalavam os namoros
dos casais apaixonados. Lembro-me de mãos dadas com minha namorada, a
Cecilinha - sósia
brasileira da Brigitte Bardot-, quando fomos ao Cine Rio, que ficava num prédio
na Rua da Consolação, onde ela morava, no quarto andar. Eu falei tanto das
pernas de Miss Charisse que ela ameaçou retirar-se do cinema.
Aquelas pernas nos
encantavam, voando nos compassos de Cantando
na Chuva, A Lenda dos
Beijos Perdidos, Meias de Seda e Dançando nas Nuvens, alguns dos musicais
de maior sucesso daquela maravilhosa gazela voadora.
Quando vi anunciada
a morte de Cid Charisse, senti uma pontada no coração, porque nos devaneios do
rapaz, que vivia numa cidade grande e poderosa como São Paulo, os sonhos tinham
que ser alimentados, confrontando-se com a realidade de uma vida tocada a duras
penas, com poucos recursos. Desde a bicicleta de segunda mão, comprada da
zeladora do prédio, das roupas consertadas do pai e dos tios, da comida simples
servida na mesa apertada da cozinha, enfim, aqueles sonhos com as pernas
voadoras serviam para colorir um pouco a vida meio cinzenta, numa cidade
escurecida pela garoa e pela falta de dinheiro. Voilá! Cyd Charisse dans nos rêves.
Numa dessas tardes
cinemáticas de domingo, culminamos com um filme dela, no Majestic, na Rua
Augusta, depois de uma longa noite pelos clubes Pinheiros e Paulistano e uma
jornada boêmia pelos bares das avenidas São João e Ipiranga. Tudo a pé, com
muita cuba libre e Pervitins na cabeça. A fantástica
bailarina ficou tão mais acessível, com tantos estímulos alcoólicos e
anfetamínicos, que eu e o Renatinho decidimos comprar uma passagem para
Hollywood para conhecê-la de perto. Saímos do cinema dispostos a procurar uma
agência de viagens e voar para os Estados Unidos, naquele dia mesmo. Sonhos
vãos! Nossa inocência não nos permitia saber que, para sair do país, seriam
necessários documentos próprios, legalizados e autorizados pelas embaixadas.
Sonhos vãos!
Já restabelecidos e
na maior ressaca, consultamos o papai sobre as possibilidades de levar a cabo
nossa aventura hollywoodiana. Ele disse: “Como é bom sonhar, meninos. Mas não
desistam, porque a vida merece seus sonhos.” Ajeitamos os colecionadores e
fomos para a aula ginasial, ainda extasiados com as belas pernas voadoras.
Ficou, para sempre,
a nossa saudade
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Enquanto os sábios discutem
as incertezas, os imbecis atacam de surpresa.
Millôr Fernandes