FESTIVAL DE BOSSA NOVA EM ARARAQUARA
Lá se vão 48 anos da minha participação num festival organizado pela Faculdade de Filosofia de Araraquara, interior sul de São Paulo. Com os violões, clavieta e muita disposição, pegamos o ônibus em Ribeirão Preto : o João Stamato, o Fred, o Marquinhos e eu. Nem havíamos ensaiado, mas, como cantávamos todos os dias e noites, sem parar, tínhamos certeza de que apresentaríamos o que havia de melhor sobre o novo estilo da música brasileira, a bossa nova.
Os promotores do evento hospedaram-nos numa daquelas pensões, muito comuns nas cidades ditas universitárias pelo Brasil afora, onde os estudantes se sentiam em casa, pois tinham cama, comida e roupa lavada, como oferecem hoje os apart-hotéis, só que num ambiente familiar. Geralmente, aquelas pensões eram abertas em casas antigas onde as famílias, desmembradas pela fuga dos filhos para faculdades em outras cidades, estados, países, ofereciam comidinha caseira, com sobremesas de doces de frutas; quartos amplos com camas feitas e os serviços de limpeza, a cargo de uma diarista - na maioria das vezes, menina da periferia-, que também obsequiava os hóspedes/rapazes/estudantes, com um sexo escondido e casual. Eles a sorteavam entre os dias da semana para que cada um se mantivesse em dia quanto ao tesão irrefreado daquela juventude sadia.
Já instalados, nossa anfitriã informou-nos que ainda chegariam mais três, vindos de São Paulo. No armazém ao lado, compramos alguns engradados de cervejas, queijos e latas de salsicha, mantendo a geladeira da casa sempre bem fornida até o dia da partida. Já tomávamos algumas no fim da tarde, quando chegaram os três paulistanos: um tal de Chico Buarque, um violonista desconhecido apelidado Toquinho e um estrangeiro, parecia boliviano, radicado em São Paulo , que atendia pelo nome de Taiguara.
Fizemos as apresentações de praxe e os três se incorporaram à happy-hour cervejística. Em minutos, todos os violões já estavam desembainhados e a cantoria começou. Cada um mais louco para mostrar o que apresentaria no festival. Um verdadeiro sarau.
Cantamos, entre outras, A banda, Canto de Ossanha e Berimbau, Helena/Helena, Pedro Pedreiro, Pra que chorar, Vai negão, Olé-Olá, O universo do teu corpo, O amor em paz, João XXIII, Insensatez, Coisa mais bonita, revezando nossas vozes e violões.
E, naquela orgia musical, duas músicas se destacaram: uma, pelo ineditismo da letra do Chico, chamada João XXIII, em homenagem ao Papa, naturalmente; e a outra, do Taiguara, pela animação do estribilho que dizia: ...Vai negão, sambando pela rua de copo na mão, sem parar, sambando pela rua até o sol raiar... E raiou mesmo. Praticamente, desmaiamos depois de tanto beber e cantar até às seis da manhã. Dormimos o dia inteiro. À noite, seria a abertura do Festival. Partimos a pé para o anfiteatro da Universidade, ainda sonolentos e com caras de ressaca. Parecíamos uns zumbis perdidos pelas ruas da cidadezinha.
Tudo combinado, eu fiz a abertura com alguns solos de violão das músicas do Baden Powell, Consolação e O Astronauta; cantei Moça-Flor, do Bebeto, e apresentei o próximo: Chico Buarque. Ele tocou e cantou Olé-Olá e A banda, sendo efusivamente aplaudido e ainda cantando mais umas três. Em seguida, chamou o Toquinho, que apresentou solos belíssimos ao violão de umas músicas do seu professor Paulinho Nogueira, anunciando depois o Taiguara, que cantou Helena Helena, super sucesso, e O universo do teu corpo, também aplaudidíssimo. O Taiguara, então, nos chamou para encerrarmos com o Vai, negão. A galera levantou-se e aderiu, formando um grande coral, tipo apoteótico, durante mais de quinze minutos.
No dia seguinte, na estação do ônibus, um bar/padaria na praça central da cidade, sentamo-nos numas caixas de frutas, largadas na calçada, e trocamos mais alguns conhecimentos musicais. Passei para o Toquinho o solo da música Viagem, do João de Aquino e do Paulo Cezar Pinheiro e ele me ensinou um solo belíssimo de Festival of Strings, música standard americana. O Chico, fumando e com o copo de cerveja na mão, ainda nos premiou com um repeteco, a nosso pedido, de Olé-Olá e, na porta dos ônibus - um para São Paulo, outro pra Ribeirão -, nos despedimos, entoando pela última vez a Vai negão...
E viva a música!
Belo Horizonte, junho/2012
Lá em cima, da esquerda para a direita, Roberto, Marquinhos, João Stamato e Fred, cantando “Pra que chorar”, arranjo de Os Cariocas.
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMAS
Si nada nos salva de la muerte, al menos que el amor nos salve de la vida. Pablo Neruda