domingo, 20 de novembro de 2016

Ijuí, 1945
Numa manhã Lúcia e eu acordamos loucos pra pegar nossos velocípedes e correr pelo quintal da casinha que morávamos em Ijuí, no Rio Grande do Sul. Passamos pela cozinha e a mamãe lá estava coando o café para o papai tomar e ir para o quartel bem alimentado: café com pão e manteiga, e um copo de leite. Enquanto ela preparava a mesa, ele vestia a farda com todos os seus botões e talabartes, para ajudar na montaria no cavalo Guri, um Pecheron que o Exército Brasileiro adotara para os Regimentos de Cavalaria. Era um cavalo branco, grande, muito fogoso, inteiro. A raça, de origem francesa, lhe atribuía características bem próprias para o serviço militar: macio de sela, muito forte e resistente e com boa tração. O Guri era um belo exemplar! 
Naquela vidinha simples, o padeiro deixava na porta de cada casa na Vila do quartel, uma ração de pães para o dia - um pãozinho para cada morador, e um litro de leite, que vinha naquelas garrafas típicas. Mamãe mantinha uma pequena horta com alfaces, espinafres, couve, salsinha, cebolinha e tomates. Assim, nossas refeições eram simples e saudáveis, com arroz, feijão, frango e ovo do próprio galinheiro, complementadas com as folhas. O cardápio era único, variando, de vez em quando, com batatas fritas, cozidas ou puré, e muito raro, raríssimo mesmo, um bife frito. Curioso, não me lembro de comer macarrão naquela época.
Naquele dia, saímos de casa atrás dos velocípedes e não os encontramos. Voltamos desapontados e murchos, quando o papai falou: “Os ciganos devem ter roubado os velocípedes. Quando eu cheguei, ontem à noite, eles estavam começando a armar o acampamento ali no campo de futebol.” 
Quando o papai saiu, furiosos e curiosos, demos as mãos para a mamãe e fomos até o quintal para dar uma olhada no acampamento. Vizinho ao muro de fundo do nosso quintal havia um campo gramado onde a soldadesca jogava futebol nos fins de semana. 
Naquele dia, havia lá um bando de umas mil pessoas, com duas barracas enormes em volta de uma tenda, onde havia dois fogões, com a lenha espalhada por todo canto. Parecia um hotel rústico. Numa das barracas dormiam os homens solteiros, e na outra, as donzelas, rodeados por diversas barraquinhas, onde ficavam os casais com os filhos menores. E a lenha servia, ainda, para as grandes fogueiras noturnas, pois o frio era bravo. Banheiros não havia. De acordo com a lenda, as necessidades eram feitas no espesso mato ao redor. “E o banho, mamãe?” perguntou a Lúcia. “Ah, minha filha, eles devem se lavar naquele rio que passa lá do lado do quartel do seu pai.”
De longe, fomos vasculhando com os olhos para todo canto e não vimos os velocípedes. Eles haviam sumido para nunca mais.
Belo Horizonte, dezembro, 2013.
 
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS 
É melhor calar-se e deixar que as pessoas pensem que você é um idiota do que falar e acabar com a dúvida. Abraham Lincoln, 1809-1865