MON FRÈRE JEAN BOTÍN
Entrei na pousada Botín, em Madrid, convidado pelo dono, meu companheiro de pelejas e escaramuças nas fronteiras francesas e espanholas. Ele se dizia cansado de viver nas matas e florestas europeias, quase como um mercenário, e resolvera mudar de ramo. Sumiu.
Depois de me saber nas Astúrias, Jean me enviou um bilhete com o seguinte convite: “Venha, Brandão, de onde estiveres, porque estou inaugurando uma hospedaria em Madrid e você será nosso primeiro hóspede.”
Nós dois gostávamos mesmo era da aventura. Eu, com o alaúde a tiracolo e ele com maço de papel e pena, vagávamos naquelas terras, compondo e cantando. Algumas vezes, nos metíamos numa refrega de família. Nada pessoal, mas defendíamos sempre as famílias cujas filhas eram as mais bonitas do burgo. Desde a Idade Média, essas famílias lutavam entre si, para aumentar seus castelos e terras e nós nos juntávamos não pela causa deles, mas apenas para ganhar uma noite numa taverna, com as mais lindas do lugar. Nossa causa era bem mais justa.
Na condição de menestréis, havíamos cavalgado por toda a Europa, cantando Plaisir D’Amour, Voici Le Mois de May, A La Claire Fontaine , Brave Marin e muitas outras canções maravilhosas, que deixamos marcadas para as gerações futuras.
A inauguração do Botín, como ficou conhecido o estabelecimento do meu amigo, de certa forma, também era uma aventura, pois além da pousada, montou um restaurante com características especiais. As hospedarias não podiam servir comidas e bebidas porque pelas leis locais iriam concorrer com os estabelecimentos congêneres e dificultar seus negócios. Assim, as carnes a serem preparadas tinham que ser levadas pelos próprios hóspedes, para serem assadas no forno à lenha. Corria o ano de 1725 e nas nossas andanças nunca havíamos topado com um lugar fino e elegante para comer e beber. Existiam somente as tabernas para a plebe. Muito rústicas, lugar de bêbados e briguentos que, por qualquer moeda, topavam até desmanchar o lugar. Até então, as cerimônias pantagruélicas finas só aconteciam dentro dos próprios castelos e eram restritas aos nobres e suas famílias, que não frequentavam aqueles ambientes.
Assim, o Botín era um lugar diferente, montado por um francês tão observador que, já naquela época, havia entendido o caráter infiel dos homens. Muito esperto, montou um restaurante com dois andares e uma pousada no fundo. No rés da rua, uma decoração simples e discreta, mesas rústicas e bancões de madeira, sem toalhas, para os transeuntes da Calle de los Cuchilleros, cerca de La Plaza Mayor de Madrid. Estilo taberna mesmo, mas, no porão, mesas reservadas, atoalhadas com todo requinte, louça inglesa, cristais e prataria para os incógnitos namoradores de toda a Europa, que lá compareciam para seus encontros secretos.
Para dar personalidade musical à casa, ele convidou para o cravo um árabe amigo dele chamado Simão, excelente músico e vibrante cantador que, também como nós, era um nômade. Assim, o Jean, o Simão e eu formamos um trio de grande sucesso nas noites madrileñas. Conhecedores de mais da metade do mundo e com um repertório variado de músicas inglesas, francesas, celtas e alemãs, quando embalados pelos aplausos, embebidos pelo vinho e encantados pelos olhares furtivos das donzelas presentes, tocávamos e cantávamos do cair da tarde até o raiar do dia, quando saía o último cliente.
Com aquela surpresa de um novo lugar fino para se hospedar, comer, beber e ouvir boa música, as pessoas se hospedavam e traziam consigo as suas preferências gastronômicas a serem preparadas por um consultor catalão que ele havia conhecido e contratado, apelidado de chef Don, que passou a comandar aquela cozinha sofisticada. Aliás, eles nem podiam manter um estoque tão variado de carnes, pois cada hóspede tinha uma preferência: coelhos, faisões, javalis, codornas e por aí vai. Assim, o requintado cozinheiro ajudou a dar fama à hospedaria. Cada receita por ele preparada era única.
O Botín foi ficando famoso e chegava gente de toda a Europa, norte da África e até da distante Ásia quando apareciam, vez ou outra, umas caras diferentes meio amareladas e de olhos pequenos e puxados para conhecer a original hospedaria/restaurante.
Certa vez, um grupo de branquelos suados, sujos e barulhentos, vindos do norte da Europa, baixou na casa trazendo a receita de uma bebida, que o Botín adotou de pronto: cevada, malte e água. Assim, ele começou a produzir uma cerveja única, escura, bem maltada, forte mesmo, que entrou no cardápio para alegria dos frequentadores.
Para ficar por perto, o árabe Simão e eu decidimos nos mudar para Jaén, no sul da Espanha, onde passamos a cultivar as azeitonas picual, próprias para temperos especiais e para produzir um azeite extra-virgem puríssimo, que fornecíamos ao Botín, como seus primeiros fornecedores. Fazíamos nossa entrega aos sábados, quando já ficávamos para saborear um Cochinillo al horno, acompanhado pelo excelente Viña Ardanza, até a hora de iniciarmos a cantoria do trio. Nestas noites alegres sempre aparecia por lá um tal de Ballesteros, espanhol amigo dele, cantador e recitador de primeira, que se juntava a nós para transformar o trio num quarteto afinadíssimo.
Eram noites quase medievais, inesquecíveis.
.
Em BH, 21/04/2011 – Este texto foi inspirado numa matéria que o Zancar me mandou de San Diego/CA, sobre o primeiro restaurante do mundo, o Botín de Madrid. A leitura e as imagens me deixaram com a impressão de que eu e meus amigos tinhamos mesmo vivido naquela época e resolvi contar a minha suposta aventura.