sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A MÁQUINA DA INOCÊNCIA

Como Primeiro Tenente Médico do Exército Brasileiro, único médico de um batalhão de 3.000 homens, em Ijuí, no Rio Grande do Sul, o papai se apresentava, a cavalo e bem cedo, no quartel, enquanto a mamãe costurava. Ao seu lado, a Lúcia e eu brincávamos separando as linhas e retroses, botões e carretilhas nas gavetas da máquina de costura Singer que a vovó Augusta havia dado para a mamãe quando ela se casou. Novos brinquedos velhos.
Essa máquina preta marcou a nossa vida. Novinha, instalada sobre um gabinete de madeira, também escura, com duas gavetas de cada lado e uma pedaleira no meio que a fazia rodar, embalou os nossos sonhos de crianças simples e sem brinquedos. Lembro-me muito de ver os pezinhos da mamãe, tocando a pedaleira, pois a Lúcia e eu brincávamos no chão, ao lado dela.
Esse sistema foi substituído, muito tempo depois, por um motorzinho elétrico que ficava acoplado na manivela da máquina, que a fazia rodar para costurar com os diversos pontos que eram substituídos, a gosto da costureira, para dar acabamento aos seus trabalhos. Essa máquina, relíquia familiar, creio, está com a minha sobrinha Maria Lúcia, que deve guardá-la com o carinho que merece.
Àqueles brinquedinhos improvisados com as sucatas das gavetas, com o tempo, outros foram sendo incorporados como lápis, apontadores, borrachas, canetas tinteiro e esferográficas, à medida que tais modernidades iam sendo introduzidas às nossas vidas. Em São Paulo, por exemplo, já montávamos os fortes do faroeste americano, que conhecíamos através dos filmes exibidos no cinema, e os castelos medievais, que imaginávamos através dos livros de histórias do Grupo Escolar com ilustrações muito sugestivas sobre essas construções de pedra onde os lordes se abrigavam e os heróis, que lutavam contra a burguesia abastada, se escondiam. Robin Hood, o nosso herói, virou uma caneta tinteiro. O frei Tucker, uma caixinha de giz, e os lápis de cores enfileirados como os arqueiros do exército Brancaleone. Já os inimigos atacavam com uma guarnição de botões de todos os tamanhos, canhões de retroses e carroças de carretéis que, com suas diferentes cores, formavam as diversas divisões de infantaria e artilharia. Eles marchavam sobre o castelo montado de caixotes e caixas de papelão que recolhíamos nas feiras-livres da Rua Oscar Freire. A Lúcia, com sua imaginação fertilíssima, improvisava verdadeiras histórias medievais com fundo musical e tudo, criando um clima de batalha alegre e descontraído. Até com a guerra ela brincava, pois nossos soldados não se matavam e sempre se confraternizavam numa grande festa de lápis e botões abraçados e dançando juntos. Era uma grande farra e ríamos muito das nossas batalhas.
Na sala ou nos pequenos quartos do apartamento da Teodoro Sampaio - onde estivesse instalada a máquina Singer -, a nossa brincadeira durava dias, semanas e meses. A mamãe costurava e a gente brincava.
Belo Horizonte, janeiro/2012

Quem esquece o passado está condenado a repeti-lo.George Santayana (1863-1952)