EMULSÃO DE SCOTT
Vinha andando distraído pela rua e dei de cara com um pôster muito antigo de um homem carregando um peixe enorme nas costas. Era a propaganda da Emulsão de Scott que ficava afixada nas entradas das farmácias nas décadas de 1940-50.
Esse complexo vitamínico infernizou nossa vida de crianças em Porto Alegre e Ijuí, quando a mamãe nos forçava a beber, a Lúcia e eu, uma colher daquele óleo com gosto de peixe estragado. Era horrível, mas – diziam -, fortificava e deixava as crianças imunizadas contra todas as doenças infantis: sarampo, catapora, gripes, resfriados, bronquite e asma. Um fenômeno da medicina da época.
Essa visão do pôster me fez lembrar, ainda, de um caso que um amigo me contou. Na breve estada dele no bairro Floresta em Belo Horizonte , casa dos pais, onde, menino levado, vivia trepando em árvores, jogando futebol de bola de meia na rua, entre bondes e algumas baratinhas Ford. Briguento e invocado, vivia provocando os vizinhos para uma briguinha. Batia nos meninos, mas depois sempre apanhava da mãe, muito brava, que batia até dizer chega. Tendo motivo ou não – disse ele -, tomava uns bofetes da mãe, que não sabia por que batia, mas ele sabia por que apanhava. Atitudes comuns nas famílias numerosas daqueles tempos. A educação era na marra mesmo, para quietar os meninos levados.
Além da sua rotina caseira diurna, uma vez ainda teve que procurar pelo pai que havia sumido de casa, depois do trabalho. Encontrou-o afogando as mágoas com amigos, num boteco, lá no bairro mesmo. Mas, distraído, o velho, havia tomado tantas que estava perdido e não sabia mais o rumo de casa. Não teve dúvidas, jogou o paizão nas costas e levou-o para casa, mais ou menos feito o peixe no cartaz da Emulsão de Scott. O pai dele era um homem alto, talvez um metro e noventa, cara de índio xavante, cabelo liso e olhos vivos, sempre de terno azul marinho e gravata preta, uniforme da Central do Brasil, onde trabalhava, além de poeta bissexto. Deve ter sido muito difícil ajeitar o corpanzil do velho nas costas.
Assim, ele passou uma meninice sui generis, estudando em colégio de abastados, o Loyola, e dividindo o arroz com feijão, batata frita e os pedaços da galinha catada no quintal, com os irmãos mais velhos e mais exigentes. Era uma vida dura!
Quando se fala do pai de alguém, vem logo a lembrança do pai da gente. Numa das visitas do papai a Belo Horizonte, fui vê-lo no pequeno apartamento que a mamãe morava, na Rua Estados Unidos, no Sion. Ao me abrir a porta, mamãe falou: Chii, Roberto, seu pai ainda está dormindo.Chegou aqui ontem à noite meio tonto e continuou bebendo sem parar. Tomou o maior pileque de uma bebida esquisita e foi dormir. Acho que desmaiou.
Com essa história na cabeça, fui acordá-lo. O quarto, todo fechado, cheirava fortemente a álcool e no criado-mudo uma garrafa de “Fogo Paulista”, uma aguardente fortíssima que eu não conhecia, nem dos tempos da dureza completa, quando estudante. Sentei-me ao lado da cama e o cutuquei. “Bom-dia, papai.” Ele abriu um olho só e com o rosto todo amarrotado respondeu: “Estou ótimo!” Sentou na cama, pegou a tal garrafa de cachaça e tomou um gole. No bico. Aí, falei: “Você não acha que está bebendo muito, papai? Já acordou nessa brasa e ainda toma essa porcaria de novo? São dez horas da manhã, papai!...” Ele me olhou firmemente nos olhos e disse como numa sentença: “Você quer saber, Roberto, eu acho que não estou bebendo é nada. Isto aqui é só um aperitivo para o que eu ainda vou beber hoje.” Conversamos um pouco e me convidou para acompanhá-lo até o bar da esquina para comprar uma nova garrafa.
O professor Brandão não aceitava qualquer crítica ou comentário a respeito dele. Assim, calmamente, o acompanhei até o botequim e, lá mesmo, tomamos uma cerveja para começar o dia. Entrei na dele, direto. Ao nosso jeito, íamos promovendo a nossa felicidade. A vida é isso aí.
Esses nossos pais... Bonheur pour nous!
Roberto H. Brandão- dezembro 2010
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Só as pessoas sem imaginação não conseguem encontrar um bom motivo para beber champanhe. Oscar Wilde