sexta-feira, 15 de abril de 2011

A MENOS ESCANGAIADA

A MENOS ESCANGAIADA
O Sêo Joaquim era o vendedor de frutas e legumes do bairro, e minha avó Augusta, mãe da mamãe, era sua amiga e freguesa semanal. Morávamos com ela, a Lúcia e eu, na Rua Bernardo Guimarães, 305, no Funcionários, em Belo Horizonte, a capital de Minas Gerais.
O ano era 1947, quando papai e mamãe foram morar nos Estados Unidos e nós ficamos hospedados com ela, onde também moravam nossos tios José e Tonico, ambos solteirões, e o primo Milton, que era piloto.
A vida era muito simples lá, quase interiorana. De uniforme azul marinho e branco, eu de calças curtas e a Lúcia de saia plissada, com o nome da Escola bordado no bolso de nossas blusas brancas, frequentávamos o Grupo Escolar Barão do Rio Branco, na Avenida Paraúna, hoje Avenida Getúlio Vargas, aonde íamos e voltávamos a pé. Os dois de mãos dadas, carregando nossas pastinhas de estudo. Não se usavam mochilas na época, só umas pastas pretas de couro legítimo, das que duravam a vida toda. Aquelas nossas, talvez, ainda estejam por aí.
Belo Horizonte era uma roça grande e boa, com ruas calçadas de paralelepípedos, passeios de pedra cortada, postes de ferro no meio das ruas e algumas poucas linhas de bonde: Floresta, Serra, Cruzeiro e Cachoeirinha, esta que era o fim da linha naquele sentido norte. Ainda não havia a Lagoa da Pampulha nem mais nada naquela região a não ser um aeroporto pequeno e precário, que recebia aviões que voavam pelo Brasil, das companhias aéreas, Panair do Brasil e Nacional Aerovias. Do final da linha do bonde até o aeroporto havia uma estrada, que hoje se chama Avenida Antônio Carlos.
Meu primo Milton era comandante da Nacional e o meu herói. Na minha visão infantil, ele era o homem mais feliz do mundo, pois viajava o ano inteiro e por todo o país. A cada viagem, ele trazia uma lembrancinha para nós. Um arco e flecha legítimos dos índios Bororós, umas cerâmicas rústicas de Belém para a vovó, rendas e toalhas cearenses e muitas, muitas histórias fascinantes dos seus voos. Da Bahia ele trouxe, inclusive, um mico-estrela, que apelidamos de Bobina.
Na nossa vidinha modesta, sonhávamos sempre, a Lúcia e eu, em conhecer o mundo, conhecer pessoas, falar muitas línguas, viajar por aí sem destino e sempre livres. Nosso lema de crianças era “vamos viver soltos e livres”, só isto. Ela me falava sempre: “Maninho, nós ainda vamos conhecer o mundo, você vai ver”. Ainda muito novinhos e com os nossos pais morando num outro país, era uma condição muito avançada para a vidinha mineira, nos anos 1940.
Papai era professor-assistente de Microbiologia da Universidade de Arkansas, em Little Rock, a capital daquele Estado, e a mamãe ao seu lado, como companheira e protetora inseparável. Nossos primos e amiguinhos sempre perguntavam: “Seus pais moram aonde mesmo? É muito longe? Como se chega lá?” E nós contávamos, orgulhosos, que tinha que pegar um navio ou um avião e atravessar o Oceano Atlântico. Nossa, era longe demais, sabíamos! Isto por que, nenhum dos meus tios nunca havia saído de Belo Horizonte, a não ser o tio Hermeto, o Soné, que havia se mudado para Pium-í, cidadezinha do interior de Minas, para tentar começar a vida lá, como advogado principiante. Não era à toa que eles achavam que o papai era um louco, um aventureiro,  e, talvez, até no conceito deles, um irresponsável. Pura falta de visão!
Naquela vidinha simples, comendo frutas no pé, almoçando galinhas e frangos do próprio quintal e jantando sopinhas de cará e canjas, que a Maria preparava, nós passamos uma infância feliz e sonhadora.
Lembro-me que o Sêo Joaquim, o verdureiro, subia a rua toda quarta-feira, puxando uma mula com dois balaios cheios de espinafres, tomates, cenouras e batatas-doce, mandiocas, alfaces, salsinhas e cebolinhas e ia anunciando, em altos brados, os produtos disponíveis para que os interessados corressem até o portão, para escolher suas preferidas.
E a vovó, num daqueles dias, me pediu: “Bebeto, corre lá e pede ao Sêo Joaquim pra parar aqui em casa que eu quero comprar umas coisas.” Corri até a rua e falei com ele, que ficou esperando no portão. Ele era uma figura estranha, maltrapilho, descalço, sujo mesmo. Quando a vovó chegou, muito delicada, cumprimentou: “Bom-dia, Sêo Joaquim, tudo bem com o senhor? E como vai a sua esposa?”
Ele coçou a nuca, abriu a boca torta - ele havia sofrido um derrame, onde apareciam só dois dentes amarelos e quebrados, e falou: “Ela tá boa, dona Augusta, e num tá tão escangaiada feito  a senhora...”
Vovó sorriu e começou a escolher os legumes e folhas.