domingo, 18 de dezembro de 2011

BELO HORIZONTE INUNDADA


Lembro-me de uma chuvarada parecida com esta do dia 15 de dezembro passado, quando morava em Belo Horizonte, em 1951, num intervalo de nossa permanência em São Paulo. Morávamos na casa do tio Hermeto, ao lado da casa da vovó, na Rua Bernardo Guimarães, no bairro Funcionários.
Era um domingo pesado, totalmente cinza, coberto de nuvens negras e, inusitadamente, papai nos convidou para um passeio pela cidade. De vez em quando ele tinha umas vontades estranhas, sem pé nem cabeça. Passear de carro num dia tenebroso como aquele? Sei lá! Aceitamos e nos aboletamos no novíssimo Austin A40, pretinho, estofamento de couro castor, alguns discretos cromados nos para-choques, nas maçanetas e na bela grade do radiador, com um escudo da marca sobre o capô. Um autêntico carro inglês da década de 1950.
Cheirando a tinta e couro, nos aboletamos no carrinho: Lúcia e eu atrás e a mamãe na frente, com o que ela chamava de sanduíches; na verdade, somente pães com manteiga e uma daquelas antigas garrafas de leite, contendo um delicioso suco de laranjas; estas colhidas no quintal da casa da vovó. Um programão de domingo!
Saímos lá pelas onze horas, com a animação típica das crianças - a Lúcia 11 e eu 10. Àquela época, Belo Horizonte ia pouco além da Avenida do Contorno. Não existiam bairros periféricos e a cidade ficava, realmente, circunscrita no modesto perímetro da avenida, cujo idealizador Aarão Reis, nunca imaginaria e nem poderia supor a desordenada e incontida explosão demográfica da Capital das Alterosas. Descendo a Rua Aimorés cruzamos com um bonde na Rua Ceará, passamos pela já arborizada Av. Bernardo Monteiro para, afinal, chegarmos à Av Afonso Pena, também frondosamente  arborizada com fícus australianos até à Praça Sete. Este cruzamento com Av. Amazonas era um divisor da cidade onde estavam localizados os abrigos dos bondes que vinham da Pampulha, Serra, Cruzeiro e Floresta. Passando pela Igreja de São José, sentimos a grandeza e exuberância da religião católica, predominante na capital.
Naquele sobe e desce, pegamos a Amazonas até a Contorno, quando fomos surpreendidos por uma tremenda tromba d’água que inundou todo o bairro de Santo Agostinho. A água atingia a metade da porta do Austin que, valentemente, singrava as ondas revoltas das correntezas. Para distrair suas duas crianças, realmente assustadas com tal volume de água, a mamãe, preocupadíssima, nos ofereceu os tais sanduíches com suco de laranja.
Papai, como sempre nas nuvens, filosofando, conduzia tranquilo o Austinzinho e ainda comentava: Gosto muito de passear com vocês aos domingos! Para ele, que raramente estava disponível para essas reuniões familiares – já que vivia dedicado aos estudos no Brasil e além-mar -, aquele era um programa muito especial. Naquela ocasião, ele vivia um intervalo entre a temporada que havia passado na Inglaterra na Universidade de Oxford e a próxima, que seria dali a um mês, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
Notamos, a Lúcia e eu, que, naquele momento, o nosso era o único carro nas ruas. Não cruzávamos com ninguém. E a chuva não parava! Um verdadeiro dilúvio.
De novo na Contorno, chegamos à Cidade Jardim, onde havia pouquíssimas casas. O papai apontou: É ali que o Célio está morando. Uma belíssima casa moderna na Rua Olimpio de Assis, isolada num bairro totalmente inóspito. O primo Célio, talvez o  melhor amigo dele durante toda a vida, havia adquirido aquela bela casa, num bairro  que viria a ser o mais chique da Capital.
O passeio continuou, enquanto as águas continuavam caindo...
Lá pelas duas da tarde, já havíamos contornado literalmente a cidade, quando papai resolveu voltar, pois a mamãe ainda ia preparar o almoço. Chegamos debaixo d’água  na casinha que não tinha garagem. Papai estacionou o Austin debaixo de uma centenária árvore de tamarindo e corremos para dentro. Foi um domingo e tanto.

Esta crônica saudosista saiu no dia 15 de dezembro de 2011, quando cheguei à Epamig depois de cruzar a Avenida Brasil debaixo d’água, subir a Conselheiro Lafaiete, remando num verdadeiro rio, e pegar a Avenida José Cândido da Silveira, totalmente congestionada. Devido à mesma intensidade da chuva relatada, neste trajeto, os acontecimentos registrados na crônica vieram nítidamente na minha memória. Parecia um filme revisitado, um dèja-vu.


Numa das fotos, em primeiro plano, assentados, a Carminha, a Sônia e o Rogério, e agachado, Eugene Salório, bolsista do Rotary hospedado com eles. Em segundo plano e não menos importantes, a D. Santa e o Dr. Célio. Em pé, o José Carlos, vulgo Zé, e o Roberto e o Zuza, estes dois últimos, de importância nenhuma.
Na outra, a fachada da casa da Olimpio de Assis, recém-habitada.
As fotos foram feitas por Célio Andrade Jr., vulgo Celinho.