domingo, 27 de novembro de 2011

OS GÓTICOS


Um gótico apareceu e pediu um Guaraná. “Antarctica”, disse ele.
Pulseira de couro preta, lógico, e outra de bolinhas douradas.
Um barato.
Coturno militar, brincos - dois furos em cada orelha – uma correia
enorme como chaveiro e a carteira, também preta,  enrascada no final
e enfiada num bolso grande do lado da calça. Que figura!
Cabelos longos abaixo da cintura, bebendo numa latinha de guaraná.
Fiquei curioso em saber o nome dele. Será que usa o próprio?
Ou algum outro apelido mais adequado com a figura negra?
Black Gottic, quem sabe? Ou isto é redundância?
Não interessa. O que importa é que saiu tão rápido quanto entrou neste
bar, numa véspera de feriado.
Pelo jeito vai longe. Latinha na mão e disposto a andar e gastar, até acabar, a super  sola do coturno preto.
Vá em paz gótico e seja feliz, sempre.   
Subitamente, chegam mais góticos, todos nos mesmos trajes negros, uns barbados, outros cavanhecados ou costeletados, mas todos exalando um cheirinho característico de mato fresco, daqueles...
Esses, já mais decididos, pediram bebidas mais fortes, cachaça pra um, conhaque pro outro e cervejas à vontade. Para todos. Eram quatro homens e duas mulheres. Elas, até muito maquiadas, ressaltavam na decoração facial fundas olheiras, bocas vermelhíssimas, sobrancelhas raspadas e brincos, argolas, alfinetes, pedrinhas e ouros e pratas por todo o corpo, imagino. As unhas, também muito pintadas, destacavam esmaltes roxos, azuis e vermelhos vivos, que mostravam garras retorcidas e prontas para esganar o primeiro infeliz que se apresentasse para uma cantada.
Do balcão, bem próximo deles, comecei a ouvir a conversa.
“Será que passou por aqui? – Deve ter passado sim, não tem outro caminho... – Ele é muito esquisito, quer entrar para a turma, mas nunca se junta conosco. - E ele nem bebe! Eu gosto dele. - Eu também. - Eu detesto. - Ele é gente boa, cara, só meio desligado. - Parece que gosta de andar sozinho, isolado, é uma figura estranha. - O que é que vocês acham? Continuamos atrás dele ou vamos ficar por aqui curtindo numa boa? – Sei lá, o papo ta bom, pra que sair por aí sem rumo. Vamos arranchar por aqui. Tem até este gente boa aí curtindo o nosso papo!”
Esta frase ele falou olhando pra mim e apontou com a cabeça. O gente boa era eu mesmo. Será que dei tanta bobeira assim? Será que minha fisionomia curiosa me entregou?
Quando me assento no balcão do Café La Place fico muito alheio a tudo. Peço uma cerveja branca e uma escura para misturar no meu blend. Não presto atenção em nada nem ninguém! Gosto mesmo é de observar aquela esquina de Afonso Pena com Brasil onde cruzam pessoas e carros em 12 direções, cada um com um pensamento, um sonho bom ou um problema na alma, uma vontade ou um desencanto na vida, cada um no seu rumo misterioso e único. Nada de mais diferente do que de qualquer outra esquina do mundo.
Reparei mais nos góticos, porque, realmente, são peças excêntricas dentro daquele pequeno grupo de beberrões de terno e gravata, de tênis e agasalhos, alguns mais descontraídos de camiseta e bermudas, todos num fim de dia e de expediente com olhares perdidos no infinito...
Belo Horizonte – novembro/2011   

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

MISTY

      Acordei no sábado, dia 16 de dezembro de 2006, com uma música na cabeça, no coração e na boca: Misty. Passei o dia e a noite de sábado, o domingo inteiro e a segunda, cantando Misty, envolvido com sua melodia suave e a letra pra lá de romântica. Na terça-feira seguinte, assistindo ao programa do David Letterman, pela televisão a cabo, ouvi dele a seguinte notícia: “Sábado passado, foi comemorado o cinquentenário de lançamento do antológico LP Heavenly, magistralmente interpretado por Johnny Mathis e que marcou época com a música Misty, no coração de diversos casais de namorados.” A data desse lançamento fora 16 de dezembro de 1956. Fiquei abismado com a coincidência da provocação da minha memória com tal aniversário.
Música é um assunto importante na minha vida. Importantíssimo. Todos os dias, logo pela manhã, depois da barba e do banho, mantenho ligado o rádio da sala, numa emissora bem musical, enquanto tomo o café da manhã. No trabalho, na minha casa, ao lado do computador, tem sempre um rádio já sintonizado na mesma estação. Portanto, é música o tempo todo. Ainda, quando saio, o rádio do carro já está conectado na chave de ignição e a música vai variando entre as rádios e cds. Com todo esse envolvimento, a coincidência foi demais.
Busquei, então, na minha velha e boa coleção de Lps, o Heavenly, datado de 1960. Tenho o hábito de datar essas compras e agora vejo como é útil este procedimento, pois devo tê-lo comprado logo que foi lançado. Naquela época, as gravações demoravam um pouco para serem reproduzidas no Brasil.
Recolhi-me no meu canto, munido de diversas latinhas de cerveja bem gelada e comecei a ouvir o bolachudo. Nenhum arranhão, apesar de ter sido ouvido, intensamente, durante mais de 40 anos. Passei a tarde/noite ouvindo Misty e decidi presentear meus amigos, neste Natal, com uma cópia em CD. Passei a telefonar para cada um deles e contar sobre a boa nova. Consegui falar com a Lúcia, o Celinho e o Zé Carlos. Ninguém mais me atendeu, nem o Eloy, nem o Brant, nem o Carlos Alberto, nem o meu compadre Flávio que, como todo interiorano, agora dorme cedo. Também, já passava da meia-noite. Alguns retornaram meu chamado, no dia seguinte. O primeiro deles foi o Márcio, que ficou muito feliz com a notícia e revelou que a música tinha sido muito importante na vida dele com a Beth, na época do namoro. Enquanto falava com o Márcio, o Ronald chamou duas vezes. Liguei pra ele e relatei o acontecido. Ele me disse: “Pois é, Roberto, tome nota aí, porque tem mais uma coincidência incrível. Considero Misty a minha música. Em qualquer lugar que eu entro, onde tenha um conjunto, orquestra ou músicos tocando, instantaneamente, começam a tocar Misty. É impressionante! Outro dia, por exemplo, estava em Nova York quando soube da apresentação do Erroll Garner num daqueles night-clubs da Broadway. Consegui, com muita dificuldade, um lugar numa mesa e corri pra lá. O show foi ótimo, pois, além de Misty, ele tinha composto diversos outros clássicos da música americana. Tocou todos, menos Misty e fiquei decepcionado, pois não era assim que acontecia comigo. Num ato de coragem, levantei-me e pedi: Mr. Garner, could you please play Misty? Of course. And I`ll do it specially for you - respondeu ele. Ganhei, assim, uma homenagem única do autor da minha música, que tocou dirigindo-se a mim o tempo todo. Foi um concerto quase particular, trocando olhares com Mr. Garner. Como você sabe, é essa coisa de músico...” E completou: “Tenho diversas gravações de Misty, mas não tenho a do Johnny Mathis.”
Ah! E ele ainda me contou outra. Disse que um dia estava jogando vôlei na praia, lá no Rio, e sentou-se pra tomar água, ao lado do grande escritor Fernando Sabino, que jogava no outro time. Conversa vai, conversa vem, começaram a falar sobre música. O Fernando tocava bateria muito bem e até tinha um conjunto amador, de jazz, com amigos. O Ronald acabou lhe contando esse episódio com o autor de Misty, que também lembrou outro semelhante que havia acontecido com ele, também em Nova York. Naquele momento na Big Apple, estava acontecendo uma apresentação do grande maestro Tommy Dorsey, por quem ele era fanático. Mr. Dorsey foi um dos maiores e melhores band-leaders americanos, de todos os tempos. Assim, o Fernando lutou para conseguir um ingresso para o espetáculo e conseguiu uma cadeira num daqueles gargarejos do Carneggie Hall. O ótimo cronista tinha, também, sua música preferida no repertório do maestro, que também não foi tocada naquela noite. Meio sem graça, mas com a mesma coragem do Ronald, levantou-se no meio da platéia e gritou: Mr. Dorsey, what about We`ll get it? O maestro respondeu-lhe: Ok, Mister unknown, I`ll play it specially for you. E, flertando com o Sabino, dedicou-lhe a canção, orquestrada magistralmente.
Para atualizar minha forma de reverenciar a linda canção, corri na Acústica e encomendei uma cópia em CD do meu antigo LP.

Belo Horizonte, dezembro/2006.

MISTY (lyrics)
(para quem quiser cantar junto com a música que está na listagem do blog)

Look at me, I`m as helpless as a kitten up a tree,
And I feel like I`m clinging to a cloud, I can´t understand,
I get misty, just holding your hand.

Walk my way, and a thousand violins begin to play,
Or it might be the sound of your hello, that music I hear,
I get misty, the moment you´re near.

You can say that you´re leading me on,
But it`s just what I want you to do,
Don`t you notice how hopelessly I`m lost
That`s why I`m following you.

On my own, would I wander through this wonderland  alone,
Never knowing my right foot from my left, my hat from my glove,
I`m too misty, and too much in love
I`m too misty, and too much in love.


FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Il n’y a qu’une antistrophe entre femme folle `a la messe et femme molle `a la fesse.
François Rabelais

domingo, 13 de novembro de 2011

OS PAPAGUENOS


Num fim de tarde, apareceu lá em casa meu compadre Flávio Simão, para decidirmos sobre um finíssimo jantar em homenagem ao Ronald Andrade, na minha opinião o melhor cozinheiro amador destas Gerais. Portanto, um evento de responsabilidade enorme.

Ao entrar, o Flávio foi logo perguntando: O que o Papagueno está fazendo aqui? Fiquei confuso e ele explicou: Ô Brandão, é aquele personagem da ópera A Flauta Mágica, de Mozart, não se lembra? E era verdade. Pela descrição, meu canarinho era a cara do Papagueno mozartiano. Assim, imediatamente providenciamos o batizado do bicho, regado a muito champanhe e com uns fabulosos tira-gostos que a Carminha havia preparado. Foi um batizado à altura da genialidade do músico setecentista.

O bichinho gozava de uma posição de destaque na sala de jantar. Assim, acostumou-se a viver e a cantar, bem próximo de todos. Inaugurava o dia com a cantoria do café da manhã, depois de tratado. No almoço, dava outro show.  Até no jantar, às vezes, esboçava um canto leve, sonolento. Era um craque. Ficou velhinho, penas esbranquiçadas, um pio de vez em quando e pum, morreu!

De lá pra cá, venho colecionando Papaguenos. O substituto do falecido, comprado de um fruteiro, no Mercado Distrital da Barroca, em frente ao Zuim, nosso fornecedor, era muito arisco e em pleno vigor da juventude. Cantava até perder o fôlego. Ficou logo conhecido como “canarinho-cigarra”, mas teve vida breve, uma pena. Ele nos acompanhou na mudança para a Raja Gabaglia e, com a melhoria no status, foi rebaixado para a área de serviço.

Amanhecemos na Raja e ele inundou o prédio com seu canto alegre e contínuo. É inacreditável, mas durante uma reunião do condomínio, fui chamado à atenção porque "o passarinho cantava muito." Uma vizinha neurótica tinha registrado uma reclamação para ser lida na assembléia, onde dizia que o canto do pássaro a incomodava muito. Coitada! Deve ter rogado uma praga, pois ele morreu de panela. É isto mesmo. D. Maria estava cozinhando um feijãozinho básico quando a panela de pressão explodiu e ele foi atingido por um caco de vidro da janela estilhaçada. Direto no coração do bichinho.

Esse segundo Papagueno teve a companhia de duas calopsitas, que piavam o dia inteiro, como galinhas velhas. Era um casal. Um dia, uma delas morreu e a outra emudeceu. Reparei que, de vez em quando, ela dava um pio choroso, lamentando a perda do companheiro. Mas, notei também que, quando ela ouvia o ranger da porta enferrujada do fogão, ficava excitadíssima. O chiado da porta era muito parecido com o do macho que viveu com ela. Acho que ficava esperançosa ou de que ele poderia voltar, ou até mesmo aparecer um substituto. Acho que foi o único caso de paixão desenfreada de calopsita por porta de forno enferrujada. Morreu de tristeza, coitadinha!

Os Papaguenos seguintes vieram de diversas cidades e regiões diferentes. Um deles, já no Buritis, ganhei do Frederico, que havia se mudado para Sete Lagoas. Esse também foi um campeão do canto. Um dia, eu estava trabalhando no meu quarto, ouvindo-o cantar, maravilhosamente, na varanda. De repente, parou! Pensei comigo, deve estar bebendo água ou tomando fôlego. Mas o intervalo ficou muito comprido e resolvi checar. O danado tinha aberto uma fresta entre os arames da gaiola e fugido. Não me aborreci, pois ele tinha pleno direito à liberdade.

O seguinte era manco e cantor médio. Tinha uma patinha com os dedos embolados, o que não fazia muita diferença, pois andava muito pouco e o canto era sóbrio. Posso considerá-lo de médio para bom cantor, pois conseguiu atrair um gavião predador, que o atacou dentro da gaiola, com as garras e o bico, fraturando-lhe a patinha boa, uma asa e perfurando-lhe um dos olhos. Ficou todo mutilado. A Maria José ligou pra mim e fui correndo socorrê-lo. Levei-o a uma clínica, mas o veterinário deu-me pouca esperança de recuperação. Entalou a patinha, passou uma pomadinha no olho furado e fez diversos curativos nas asas e em todos os lugares onde o predador miserável o havia atingido. Depois da agressão, coitadinho, durou mais uns poucos dias.

Agora, na Toca, tenho um campeão também doado pelo Frederico. Acho que veio de Sete Lagoas. Dou um trato nele toda manhã, com alpiste, mistura para canário e um indispensável pedaço de jiló, que ele adora.  Cuidado e alimentado, ele dispara a cantar.

Assim, aos Papaguenos só tenho a agradecer pela alegria de suas companhias ao longo do tempo.


Em Novembro de 2011, sobre um tema que começou em 1967.
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Detesto conselhos a não ser os que eu dou. Jack Nicholson

domingo, 6 de novembro de 2011

BELAS PERNAS VOADORAS

Em julho de 2008, foi-se a nossa deslumbrante bailarina Cyd Charisse, que enfeitiçou as matinês e soirèes dos cinemas Rio e Majestic, na gloriosa década de 50, em São Paulo. Suas pernas, verdadeiros monumentos à beleza feminina, eram tão perfeitas que haviam merecido um seguro de milhões de dólares para garantia e preservação de sua eficiência no balé e manutenção de sua perfeição na estética.
Chamo-a de nossa porque ela pertenceu a todos nós, apaixonados e cultuadores da beleza distante de suas pernas. Seus pares, Fred Astaire e Gene Kelly, que a solicitavam para palcos no mundo inteiro, eram o alvo do nosso maior ciúme, quando tocavam aquelas pernas para embalá-las em passos acrobáticos e perfeitos até pousarem no chão, magistralmente.
Hollywood produzia filmes para o entretenimento com muita música e dança que embalavam os namoros dos casais apaixonados. Lembro-me de mãos dadas com minha namorada, a Cecilinha  - sósia brasileira da Brigitte Bardot-, quando fomos ao Cine Rio, que ficava num prédio na Rua da Consolação, onde ela morava, no quarto andar. Eu falei tanto das pernas de Miss Charisse que ela ameaçou retirar-se do cinema.
Aquelas pernas nos encantavam, voando nos compassos de Cantando na Chuva, A Lenda dos Beijos Perdidos, Meias de Seda e Dançando nas Nuvens, alguns dos musicais de maior sucesso daquela maravilhosa gazela voadora.
Quando vi anunciada a morte de Cid Charisse, senti uma pontada no coração, porque nos devaneios do rapaz, que vivia numa cidade grande e poderosa como São Paulo, os sonhos tinham que ser alimentados, confrontando-se com a realidade de uma vida tocada a duras penas, com poucos recursos. Desde a bicicleta de segunda mão, comprada da zeladora do prédio, das roupas consertadas do pai e dos tios, da comida simples servida na mesa apertada da cozinha, enfim, aqueles sonhos com as pernas voadoras serviam para colorir um pouco a vida meio cinzenta, numa cidade escurecida pela garoa e pela falta de dinheiro. Voilá! Cyd Charisse dans nos rêves.
Numa dessas tardes cinemáticas de domingo, culminamos com um filme dela, no Majestic, na Rua Augusta, depois de uma longa noite pelos clubes Pinheiros e Paulistano e uma jornada boêmia pelos bares das avenidas São João e Ipiranga. Tudo a pé, com muita cuba libre e Pervitins na cabeça. A fantástica bailarina ficou tão mais acessível, com tantos estímulos alcoólicos e anfetamínicos, que eu e o Renatinho decidimos comprar uma passagem para Hollywood para conhecê-la de perto. Saímos do cinema dispostos a procurar uma agência de viagens e voar para os Estados Unidos, naquele dia mesmo. Sonhos vãos! Nossa inocência não nos permitia saber que, para sair do país, seriam necessários documentos próprios, legalizados e autorizados pelas embaixadas. Sonhos vãos!
Já restabelecidos e na maior ressaca, consultamos o papai sobre as possibilidades de levar a cabo nossa aventura hollywoodiana. Ele disse: “Como é bom sonhar, meninos. Mas não desistam, porque a vida merece seus sonhos.” Ajeitamos os colecionadores e fomos para a aula ginasial, ainda extasiados com as belas pernas voadoras.
Ficou, para sempre, a nossa saudade.

Roberto H. Brandão – julho/2008/novembro 2011

FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Tudo que é fácil de ler é difícil de escrever e vice-versa.
Telmo Martins - Jornalista