MARINA DAS DORES
Sempre perto de nós, de mim e da Lúcia, a tia
Marina tem sido nossa step-mother
a vida toda. Com amor e carinho, tomo a liberdade de escrever uma
brincadeirinha sobre ela. Na verdade, nunca conheci uma pessoa tão alegre e
dolorida quanto ela. Não sei como foi na sua época dourada de campeã mineira de
tênis pelo Minas Tênis Clube, que honrou tanto o nome. Também não me recordo
bem desta época, pois era muito pequeno e morávamos em São Paulo, longe dos
esportes mineiros.
Nossos encontros mais intensos foram nas temporadas em que o papai e a mamãe se
mudaram para os Estados Unidos (1947 e 1951) quando então ela assumiu as
funções de mãe, tia, avó, etcétera e tal, em tempo integral. Bons tempos
aqueles!
Lembro-me muito de que, entre uma dor e outra, ela nos vestia com os uniformes
do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, para onde ela nos levava de bonde toda
manhã e buscava na hora do almoço.
Belo Horizonte era muito pequena e provinciana, no entanto, os bondes nos
conduziam com segurança e muita precisão nos horários. Para irmos ao Grupo, na
Av. Paraúna, pegávamos os amarelos na Rua Ceará, que seguiam até a Praça Diogo
de Vasconcelos, ponto final e retorno. Apesar da famosa padaria Savassi já
estar lá, instalada, ainda conservava o nome original.
Era uma infância muito feliz na casa da vovó Augusta. O almoço, uma delícia que
a cozinheira/arrumadeira/faz tudo, Maria, novinha no primeiro emprego,
preparava com pratos gostosos e saudáveis, pois a vovó comprava do Joaquim as
verduras e legumes fresquinhos trazidos no lombo de uma velha mula.
Desdentado e coxo, Seu Joaquim subia e descia as ladeiras da cidade com suas
preciosidades, cultivadas na própria horta. Ele gostava muito da vovó e sua
sinceridade era pública e notória. Um dia ela lhe perguntou como ia a mulher
dele, se ela estava boa e ele respondeu sem cerimônia: “Ela tá boa, dona
Augusta, e bem menos escangaiada que a senhora.”
Na casa da vovó moravam o tio Zé e o tio Tonico, filhos solteirões, na época
beirando os cinquenta anos. Eles cuidavam do quintal e mantinham, cada um o
seu, belíssimos orquidários. A massa do macarrão era feita em casa, os molhos
eram preparados com tomates e pimentões colhidos na hora, na horta que ela
mesma cultivava. Um verdadeiro luxo!
Tinha de tudo a dois passos da cozinha, onde um antigo fogão de lenha mantinha
uma enorme criação de escorpiões e um forno onde se assavam os pãezinhos para o
café da manhã e o lanche. O quintal era uma beleza! Ao fundo, havia uma
touceira de bananas, alguns pés de variadas laranjas, dois limoeiros, uma
caramboleira, um pé de fruta de conde, mangueiras de diversas espécies e um
abacateiro que fazia sombra no quarador de roupas ,
Numa coluna, ao lado do fogão, ficava o poleiro do Lôro. Papagaio esperto que
falava, entre outras coisas, o próprio nome, ensinado pela vovó, sua dona:
bom-dia, boa-tarde e boa-noite faziam parte do vocabulário dele e nas horas
certas. Sabia, também, muitos palavrões: merda, fio da puta e pqp. Ele era
muito esperto e comia frutas e pão molhado que a vovó lhe dava toda manhã. Ela
só parou de alimentá-lo quando pegou uma pneumonia brava que a deixou na cama
até os setenta e cinco anos.
Lembro-me de que eu me sentava aos pés da cama dela para ouvir suas histórias
e, tipo Brandão, ficava batendo os pés no estrado. Era quando ela, cabelinho
cinza puxado para trás me olhava com ternura e pedia: “Não bata com os pezinhos
na cama não, filhinho, porque incomoda a vovó, viu?”
E ali, na casa da vovó, passamos dois belos períodos com a tia Marina, o tio Zé
e o tio Tonico. Sobre estes dois, vale registrar: tio Zé, atleticano doente,
sofria de úlcera de estômago e vivia de mau humor. Era magrinho e, sempre, com
uma caixinha de bicarbonato no bolso. Saía bem cedo para trabalhar no DER –
Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais. Já o tio Tonico, mais novo
e fortão, capitão-dentista da Força Pública, americano por amor e convicção,
havia jogado como back no scretch do América Futebol Clube. Ainda
como controvérsia, mas sem resultados práticos, o tio Tonico era espírita e o
tio Zé, um ateu radical. No quesito religião, os dois não se entendiam, mas se
respeitavam muito. Quando havia sessão espírita lá em casa- toda quarta-feira -, o tio Zé só aparecia
depois das dez, para não se incomodar com as velas acesas, os espíritos
baixando e todo mundo rezando à mesa da sala de jantar.
Já a Maria, cozinheira de forno e fogão, gostava de fazer uma fezinha no jogo
do bicho. Jogava todo dia e ficava perguntando se alguém tinha sonhado com
alguma coisa e, quando alguém contava o sonho, ela fazia suas deduções. Um dia
lhe contei que tinha sonhado que estava no jardim, quando vi um grilo verde
pulando. Ela logo deduziu: “Isso dá borboleta, Bebeto. Sonhar com grilo tem que
jogar na borboleta”. Acreditei naquela loucura e pedi uma moeda de um mil réis
ao tio Tonico, para a Maria jogar. E não é que deu borboleta! Ganhamos cinco
mil réis e, dali pra frente, todo dia tinha que contar a ela os meus sonhos.
Por azar, nunca mais ganhamos,
Os meus amigos e vizinhos, Wilton e o irmão Eduardo, Décio Freire, o Destão
Cabeçudo; Clermont Gosling, Rodrigo e Petrônio Zica, Eduardo e Júlio Brasil
passavam lá em casa todo sábado para jogarmos uma pelada na Avenida Paraúna,
hoje Getúlio Vargas, onde havia um canteirão de grama no meio,
entre rua Aimorés e Bernardo Guimarães.
Ainda jogávamos bente-altas e finca, rolávamos nossos carrinhos de rolimã pelos
passeios esburacados, trepávamos em árvores para chupar tamarindo - havia dois
pés enormes, no quarteirão em frente de casa -, soltávamos papagaios, que nós
mesmos fazíamos. Enfim, era uma infância saudável e feliz.
Voltemos a “Marina das Dores”, que descia a Rua Marquesa de Alorna para ir à
casa da vovó, atravessando por um lote vago na Rua do Ouro. Ela ainda pulava
uma pinguela na Avenida do Contorno e pegava a Rua Bernardo Guimarães até o
número 305. A
visita diária era para cuidar do Bebeto e da Lucinha, sobrinhos queridos.
O telefone da casa da vovó, coisa raríssima na época, me lembro, era 2-1188.
Com um pulo na história, volto a me lembrar da tia Marina, já casada com o
dentista-violonista e super bem humorado Nelson Emiliano Orsini, vulgarmente
conhecido como “Nirsinho de Brito, atleticano, violeiro, cachaceiro futebol
clube”. Apelido que ele mesmo criou quando se apresentava para alguém.
Tio Nelsinho era uma pessoa especial e se dedicou à tia Marina com o maior
carinho, cuidando das suas diversas dores a vida toda. Para ela, era um
verdadeiro anjo da guarda. Ele também gostava de um churrasco caprichado, uma
cachacinha e uma cerveja gelada. Companheiro de Noel Rosa e Ari Barroso, bem
como de toda uma geração de músicos da Rádio Nacional, da Rádio Inconfidência e
adjacências, acompanhou grandes cantores como Francisco Alves e tantos outros.
Ele era especial mesmo!
Muitos anos depois, tendo morado em São Paulo por dez anos, voltamos para Belo
Horizonte e por um período fui morar com o tio Zé, na Rua das Camélias, na Nova
Suíça. Tio Tonico morrera prematuramente aos sessenta anos, de um enfarte
fulminante. Assim, tio Zé vendeu a casa da vovó e construiu uma casinha pra ele.
Projeto próprio, bem simples, com um quintal grande cheio de passarinhos,
orquidário caprichado e uns vira-latas pra latir muito e não morder.
Aos domingos, ele saía cedinho para ir ao Mercado Central fazer as
compras da semana. Lembro-me bem dele naquelas manhãs, olhos azuis da cor do
mar, sorriso mais solto depois que se livrou da úlcera, pernas tortas, descendo
a Rua das Camélias com duas sacolas fechadas e enroladas debaixo dos braços, de
sandálias de dedo e de bermudas, para pegar o lotação na Rua Desembargador
Barcelos. Logo que chegava, sacolas cheias, Maria ia desembalando as compras e
ele pegava uma cerveja e me chamava: “Vem cá, Bebeto, vamos esperar o Nelson e
a Marina.” Sentávamo-nos na varanda onde havia um jogo de cadeiras e mesa de
ferro, com tampo de vidro, a cerveja gelada e uma brisa agradável.
Logo, soava a buzina – pan,paranpan,panpan – e surgia o Studbaker preto
dobrando a esquina. Mais cervejas, um almoço caprichado com arroz, feijão,
nhoque, capeleti com molho de frango, goiabada e doce de leite com queijo, café
esturricando de quente e muita felicidade. E a “Marina das Dores” sorrindo,
feliz naqueles domingos quentes dos anos 1960.
Republico esta crônica, escrita em dezembro de
1960 e publicada aqui no blog em 2010, em homenagem à minha querida tia Marina,
que faleceu no domingo passado, dia 10 de julho, aos 99 anos e quatro meses. de
mãos dadas comigo e com o meu primo Maurício, também sobrinho dela. Ela fechou
definitivamente os olhinhos como um passarinho e manteve aquele sorriso alegre
de uma pessoa feliz.
Vai com Deus, querida!
MISSA DE SÉTIMO-DIA NESTE DOMINGO, 17 DE JULHO,
ÀS 19:30, NA IGREJA DE NOSSA SENHORA RAINHA, NO BELVEDERE.
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
“É preciso fazer o mundo inteiro
cantar. A música é tão útil
como o pão e a água.” Heitor Villa-Lobos