sábado, 28 de abril de 2012

ANTÔNIO, MARIA E JOSÉ
Um triângulo amoroso como outro qualquer. A-pa-ren-te-men-te.
Antônio é um artista e anda como se fosse um comendador. Observa tudo ao seu redor, as pessoas, os animais, as plantas e o Rio das Velhas. Altivo, ele tem o olhar de um sonhador. Acorda sempre antes do amanhecer, dá uma espreguiçada e prepara-se para sair. Com um olhar, convida Maria para apreciar, do alto, o movimento da missa dominical na matriz de Santa Luzia, cidade histórica do interior mineiro. Os dois seguem felizes. O passeio, para eles, é sagrado, principalmente no domingo, quando tudo está mais calmo, sem aquela barulheira e correria do meio da semana. Ela também tem sua rotina: acorda, quase que simultâneamente com Antônio, espreguiça-se bastante, estica daqui e de lá, abre bem os olhos e aguarda o convencional chamado dele.
Eles acham delicioso sair juntos e felizes mundo afora. Fazem isto há tanto tempo, desde que se conheceram num dia qualquer de verão, quando os dois estavam flanando no espaço. Um bateu o olho no outro e foi aquela paixão instantânea. São muitos anos de convivência, comprovando que, para se viver feliz, é muito simples, basta querer. E, nesse longo tempo juntos, tem acontecido de tudo.
Relaxados, eles sobem, sobem, levando a imaginação até quase o infinito.  Lá do alto, apertadinhos, descem como uma flecha até o limite da segurança. Aí, levantam o peito, redobram os esforços e sobem novamente, com a cabeça erguida para um novo rumo determinado. É o próprio vai-vem da vida e eles sabem que subir e descer só depende deles.
Além dos dois, há também o José, aquele companheiro inseparável que está sempre rondando por ali. É um bom amigo, eles sabem, mas não precisava ser assim tão íntimo. De vez em quando, José dá um mergulho em cima de Maria, que foge assustada. Ela corre pra cá, escorrega pra lá, coitada, fugindo dele que só para suas investidas quando Antônio reage agressivamente. Ele não gosta nem admite essas brincadeiras com Maria. Afinal, Maria é sua. Ninguém pode nem deve se engraçar com ela. Nem mesmo José, que só pelo fato de ser vizinho já é suspeito. Maria é sua e pronto. Antônio tem sua posse há tempos. Cuida bem dela e dos filhos, dedicando especial atenção a todos. E não aceita que nenhum intruso, mesmo brincalhão, se intrometa na vida deles.
Todos nasceram na mesma área e sempre estiveram por perto, um observando o outro. Agora, já adultos, parece que José perdeu o respeito e fica provocando Maria. Ele está sempre de olho nela. O casal se prepara para sair e logo ele aparece. Com cara de sonso e distraído, incorpora-se ao passeio. Vão os três na mesma balada e ele de olho nela.   Num átimo, José chega mais perto e dá uma raspada em Maria.
Todos que, como eu, estão observando aquele trio, percebem a malandragem de José. Afinal, a cidade de Santa Luzia, onde vivem, é bem pequena e uma situação dessas pode virar uma tremenda fofoca. Maria não gosta, sai de lado e se faz de desentendida. Mas, ele não dá trégua, é muito insistente e está doido pra tirar um sarrinho. É só Antônio se distrair um pouco que José se aproxima e dá uma raspadela em Maria. No fundo, José tem medo porque Antônio é bem maior do que ele e, quando fica bravo, ninguém segura. Vira um bicho! Mas, José é safado e quer mesmo é tirar uma casquinha em Maria. Só um sarrinho mesmo, nada de mais. E não é só com a Maria, não. É com a parentada toda. Com quem estiver mais perto. Ô José levado, sô!
E assim continuam os três, voando durante todo o dia até o crepúsculo. Da varanda do sítio Zuza, acompanho, curioso, aquele lindo vôo dos três românticos urubus.
Belo Horizonte, julho/2001.
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
O pior dessa juventude é que a gente não faz parte dela. Bernard Shaw


sábado, 21 de abril de 2012

AS BOAS CARONAS

Decidimos viajar à tarde, para evitar os congestionamentos da manhã, no feriado de 21 de abril de 1974, num Ford azul marinho metálico 1955, motor Rocket V8, pneus meia-vida em rodas de ferro com calotas, tanque cheio até à boca de gasolina azul, partimos para o Rio de Janeiro. Fomos, o Zuza e eu para entregar o carrão para o Reginaldo, no Rio. O Regi, irmão dele, havia comprado o Ford por gosto pela marca e também pra ajudar o irmão, que tinha mais umas duas bombas na mão, com dificuldade em vendê-las: um Perfect 1964 inglês, novo, dizia ele e um Gordini, azul, 1971, também novinho.
Na saída de Belo Horizonte nada de mais. Estrada vazia, todo mundo calmo e o Fordão funcionando maravilhosamente. Já em Barbacena, ele começou a ferver. Comentei com o Zuza que refutou: Tá muito calor, Roberto, daqui à pouco volta à temperatura normal.
Claro, co-piloto não discute.
Seguimos pela BR-040 novinha até a Cabana da Mantiqueira, em Barbacena, parada obrigatória naquela época. Era de praxe comer uns pães de queijo e tomar umas Coca-Colas geladas. Tudo normal, com o Ford fervendo, mas sem problema.
Re-abastecidos, prosseguimos para a próxima parada um pouco à frente de Juiz de Fora,
na Roselanche. Mais um refrigerante e uns pastéis de queijo, para não enjoar e enfrentar a descida da Serra, numa estrada sinuosa de mão única, até o Rio.
Logo após o desvio para Petrópolis havia um soldado numa das curvas, pedindo carona com o dedo característico. O Zuza me perguntou: Vamos levar o soldadinho? Claro, respondi, num carrão destes podíamos levar até mais...
Paramos e falamos, entra aí, soldado. O carrão era de duas portas e tive que auxiliá-lo a entrar, com aqueles bancos que se dobram para o passageiro de trás. Ele se acomodou e continuamos a viagem. O Zuza, assoviando o Hino Nacional em homenagem ao passageiro ilustre, fincou o pé direito no Fordão e despencamos serra abaixo a uns 150 km/h.
No mesmo momento, acho que furou uma mangueira que levava a gasolina para o carburador, o carro era de 1955, e virou um bólido, literalmente. A gasolina voando pra todo lado e o automóvel disparado ladeira abaixo. Já acostumado com a perícia do piloto de inúmeras outras viagens, eu estava relaxado no banco da frente e observando o soldadinho no banco de trás, arregalado e tentando se agarrar em qualquer P...M... que estivesse por perto. Coitadinho, pensei, ele nunca pensou que uma caroninha tão próxima do Rio, pudesse ser tão perigosa. Num instante ele bateu no meu ombro e pediu: ”Ô moço, pergunta pra ele se eu posso descer...”. Onde? Perguntei, em algum posto de gasolina? “Não moço, em qualquer lugar.” Mais umas curvas cantando pneus e ele desceu, pálido. Ficou em pé no meio da estrada e deu um adeus pra nós,
aliviado.
Noutra, o Reginaldo, o mesmo lá de cima, subia do Rio para a casa da tia em Itaipava quando viu um carro parado na estrada com um homem acenando. Parou, solidário e perguntou se o homem precisava de ajuda. O cara disse que sim, que deveria voltar para o Rio, pois tinha um compromisso às 20:00 horas no Teatro Municipal.  O Regi, então,
prontificou-se a levá-lo até o posto mais próximo da Polícia Rodoviária onde o pobre coitado talvez conseguisse uma carona para levá-lo ao Rio. Fez isto e deixou o maestro Radamés  Gnattali, não muito perto do concerto que regeria no Municipal. Coisas da vida.
Mais uma boa carona. Estávamos numa festa em Campinas na casa de uns amigos, o Celso Quatrocentão e eu, quando resolvemos ir embora. O dono da festa, o Alvinho, nosso amigo de Ribeirão, pediu-nos para levar um dos convidados para São Paulo, nosso destino. Claro, podemos levá-lo, sim.
Assim, acomodamo-nos no Karmann-Ghia  do Celso, eu atrás, espremido e sem conforto, cedi o banco da frente  para o fantástico, fabuloso, insuperável estilista Clodovil Hernándes. Pessoa simpatissíssima, pediu ao Celso somente uma atenção durante a viagem. Que, em cada pedágio ele desse um tempinho para ele ver os guardas rodoviários com as suas botas, pois ele ficava excitadíssimo aos vê-los.
E o Celso o atendeu.
Belo Horizonte, abril/2012

FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Antes, todos os caminhos iam, hoje, todos os caminhos vêm. Mário Quintana


           

sábado, 14 de abril de 2012

Manga
MANGA PELA MANHÃ

Certa manhã, deparei com dois verdadeiros “sugismundos”.  Os dois, um casal, comendo mangas, assentados nos bancos da frente de um VW azul, estacionado debaixo de uma centenária paineira, no bairro Santo Agostinho. Constatei, depois, que estavam fazendo hora para bater o ponto na repartição pública onde trabalhavam, bem em frente. Até aí, nada de mais; no entanto, resolvi prestar atenção para ver como iam se sair da lambuzeira que é roer manga, descascada com as unhas, sem um pratinho sequer, muito menos sem guardanapos ou babadouros. Água, no carro, também não havia, evidentemente.
Parei, despistadamente, na banca de revistas, em frente, e fiquei fingindo que estava lendo alguma coisa nos jornais dependurados. De óculos escuros, como um detetive, fui acompanhando os movimentos deles, que abriram as portas, lambuzando as maçanetas de caldo de manga.  Ao saírem do carro pareciam buscar ou um pano ou um papel, para limparem as mãos. Nada à vista, porém. Então, rasparam as mãos, ele nas pernas da calça e ela na sainha curta, pregueada num xadrez tipo bandeira da Inglaterra.
O sabor do lanchinho matinal devia estar ótimo, pois nem se importaram, ao passar por mim, de dar uma chupadinha para tirar uma fibra agarrada nos dentes da frente. Eram mal educados mesmo.
Por coincidência, entraram no prédio e se dirigiram para a repartição onde eu também entraria para pegar um documento de contagem de tempo de serviço para efeitos de aposentadoria, que era o meu objetivo. Assentaram-se nas suas respectivas mesas, em frente às poderosas máquinas de escrever Olivetti, e começaram as suas jornadas de trabalho. Entrei na sala e fui direto ao balcão, mas ainda prestando atenção neles, que, primeiro e antes de tudo, cumprimentaram todos os colegas de serviço com as mãos ainda meladas e os tradicionais beijinhos amarelados, nas bochechas. E o cheirinho de manga havia contaminado o ar.
Belo Horizonte, dezembro/1982.

                                                                                                       

FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMAS


Das três melhores coisas da vida a segunda é comer e a terceira é dormir.

Sergio Porto – 1923-1968

sábado, 7 de abril de 2012

MEMÓRIAS BELORIZONTINAS

A respeito de umas fotos que o Henrique Oswaldo me mandou – registros da cidade de Belo Horizonte nos anos 1930 e 1940 -, uma delas, em especial, me chamou a atenção: o início da Avenida Afonso Pena, com Avenida Paraná, num ângulo talvez sacado do alto de um prédio da Feira de Amostras, então localizada onde é hoje o estacionamento do Terminal Rodoviário. Aquelas árvores da Afonso Pena me remetem a lembranças muito boas dos tempos de menino.
Corria o ano de 1951, quando o papai e a mamãe moravam nos Estados Unido e a Lúcia e eu morávamos na casa da vovó Augusta, mãe da mamãe, na Rua Bernardo Guimarães, 305, entre Ceará e Piauí. Era uma casinha com jardim e quintal, num pequeno lote, mas suficiente para abrigar um variado pomar com laranjeiras, limoeiros, abacateiro, goiabeiras, uma touceira de bananas, mamoeiro e um raríssimo pé de carambola, que tanto encantaram a nossa vida.
Meus tios solteirões, que também moravam na casa - o tio José, atleticano roxo, desenhista de projetos no DER e o tio Tonico, ex-beque do América, capitão-dentista da Polícia Militar -, se desdobravam para atender aos queridos sobrinhos, gentilmente promovidos à categoria de filhos. Um tempo feliz e inocente, numa cidade ainda pequena e provinciana, cujas lembranças são inesquecíveis. A foto que ilustra esta crônica, por exemplo, me remete ao tempo em que descíamos pela Rua Bernardo Guimarães até a Afonso Pena, atravessando a muito arborizada Bernardo Monteiro. Nós podíamos pegar o bonde na Rua Ceará, mas, preferíamos este caminho a pé, com o tio Tonico, pois ele aproveitava para procurar saber tudo sobre a nossa vida em São Paulo: se era perigoso viver lá, se era muito frio, se a garoa era todo dia mesmo, como eram os ônibus e os bondes, se o nosso bairro era grande, se praticávamos esportes, se o nosso ginásio era perto, se íamos a pé, enfim, tudo que um tio zeloso pudesse saber para tentar substituir nossas alegrias e rotinas por atividades aqui correspondentes, a fim de não causar nenhum impacto nas nossas novas e temporárias vidinhas. Ele era o meu “padrinho”, posso assim dizer, visto que o tio José era o da Lúcia, que fazia as mesmas perguntas para ela.
À mesa, todo dia, no almoço ou no jantar, os dois tios nos estimulavam a torcer pelo Galo ou pelo Coelho, colocando os talheres apontados um para o outro. Quem se lembrasse primeiro do desafio e colocasse os talheres em posição de ataque, ganhava a disputa daquele dia. Era uma brincadeira bobinha que nos levou a torcer pelos respectivos times deles. Uma rivalidade sadia e muito divertida.
Voltando ao nosso passeio, quando chegávamos à Afonso Pena, descíamos até a Av. Carandaí para tomar o bonde. Eles vinham sempre vazios, eram abertos com os estribos à mostra. As linhas da Serra ou do Cruzeiro desembocavam ali, onde, na esquina, me lembro, já existia aquela central de energia da Cemig. No bonde, seguíamos até o retorno da Rua da Bahia, onde os motorneiros trocavam as suas manoplas de dirigir, do fundo para a frente ou vice-versa, viravam os  suspensórios, aquelas hastes que eram ligadas aos fios elétricos aéreos e assim, invertiam seus trajetos. Naquele percurso, eles corriam por dentro de uma alameda de fícus australianos muito altos, como um prédio de dois andares, que tinham suas copas aparadas em forma retangular. Uma maravilha registrada na foto enviada pelo amigo HO.
Belo Horizonte, março/2012