BELO HORIZONTE QUE EU GOSTO
A Rua Bernardo Guimarães era inteiramente calçada com paralelepípedos. Uma vez por mês, os martelinhos catavam os brotos de capim que ali cresciam. O som deles começava cedo, antes das sete da manhã. A Lúcia e eu já acordávamos com as batidinhas nas pedras. De um pulo, vestíamos os uniformes do Grupo Escolar Barão do Rio Branco e ficávamos esperando a tia Marina para nos levar, de mãos dadas, pela Avenida Paraúna. Seguíamos a pé, carregando as pesadas pastas de couro preto, cheias de cadernos, montados pelo tio Tonico - ele tinha uma pequena marcenaria nos fundos da casa da vovó Augusta, onde morávamos com os dois e o tio José. Na marcenaria, ele fabricava carrinhos e pequenos caminhões, que distribuía aos filhos dos pobres que frequentavam o Centro Espírita Jesus, Maria e José, onde ele e a Natalina presidiam uma sessão espírita às quartas-feiras. A Natalina era uma dublé de médium espírita e empregada doméstica. Nesses dias, o tio José só chegava em casa depois das onze da noite, quando as sessões já haviam terminado. Radicalmente ateu, ele tinha horror àquelas reuniões. E era atleticano doente, diametralmente oposto ao tio Tonico, que era americano e jogava como beque na esquadra do Coelho. Os dois só tinham uma coisa em comum, eram solteirões convictos e, com isto, moraram com a vovó durante toda a vida dela. Mas, apesar das diferenças, os dois se davam muito bem, embora tivessem tudo separado. Cada um mantinha seu próprio orquidário no amplo quintal da casa, em meio a bananeiras, laranjeiras, limoeiros, abacateiro, caramboleira, mamões, chuchus, tomates, galinha e pintinhos aos montes. Era uma típica casa de avó, delícia encravada no bairro Funcionários.
Lúcia e eu brincávamos no passeio, jogando maré e bente-altas, recomendados para não irmos para o meio da rua, cujos postes de iluminação a dividiam em duas. Eram imensos postes de ferro onde, num descuido, dei uma cabeçada quando corria pelo meio da rua pedregosa, soltando pandorga, nome gaúcho do brinquedo papagaio, conhecido em São Paulo como pipa. Àquela época, tínhamos vindo do Rio Grande do Sul para Belo Horizonte e ainda carregávamos umas expressões locais como pandorga e bolicho: botequim de rua.
No fim das tardes de segunda-feira, nós dois íamos de mãos dadas até a Praça do ABC, que tinha outro nome e do qual não me lembro mais, para acompanhar a.montagem de uma enorme tela entre os postes do centro da Avenida Afonso Pena para exibir, à noite, o Cine Grátis. Fazia parte do ritual da montagem, a cobertura com capuzes de lonas pretas de todas as lâmpadas da praça para criar um blecaute artificial para a exibição dos filmes. Era um programação mensal para a meninada do bairro e da vizinhança.
O pãozinho da manhã era comprado na padaria do Sêo Tibúrcio, no final da rua Aimorés, esquina de Contorno com Paraúna onde, nos canteiros centrais, a molecada disputava campeonatos de futebol, geralmente jogado com bolas de borracha ou de meia. Do outro lado da Avenida Contorno, havia um córrego de águas límpidas e transparentes onde, nos dias quentes, nos refrescávamos ou pescávamos uns lambarizinhos. Infância pobre e muito feliz.
Lembro-me de construir um carrinho de rolimã com o qual andei por todo o bairro nos passeios de pedras grandes e irregulares.
A pedido da Lulu vou aproveitar o blog para contar umas historinhas sobre a minha vida com a sua mãe Lúcia, minha irmã, começando pela nossa infância muito bem vivida em Porto Alegre, Ijuí, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.
A respeito do título, copiei o nome de uma canção do Pacífico Mascarenhas, já postada aqui no blog, que pode ser ouvida como música de fundo das leituras.
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Os loucos às vezes se curam. Os imbecis nunca. Oscar Wilde