sábado, 30 de junho de 2012

BELO HORIZONTE QUE EU GOSTO

A Rua Bernardo Guimarães era inteiramente calçada com paralelepípedos. Uma vez por mês, os martelinhos catavam os brotos de capim que ali cresciam. O som deles começava cedo, antes das sete da manhã. A Lúcia e eu já acordávamos com as batidinhas nas pedras. De um pulo, vestíamos os uniformes do Grupo Escolar Barão do Rio Branco e ficávamos esperando a tia Marina para nos levar, de mãos dadas, pela Avenida Paraúna. Seguíamos a pé, carregando as pesadas pastas de couro preto, cheias de cadernos, montados pelo tio Tonico - ele tinha uma pequena marcenaria nos fundos da casa da vovó Augusta, onde morávamos com os dois e o tio José. Na marcenaria, ele fabricava carrinhos e pequenos caminhões, que distribuía aos filhos dos pobres que frequentavam o Centro Espírita Jesus, Maria e José, onde ele e a Natalina presidiam uma sessão espírita às quartas-feiras. A Natalina era uma dublé de médium espírita e empregada doméstica. Nesses dias, o tio José só chegava em casa depois das onze da noite, quando as sessões já haviam terminado. Radicalmente ateu, ele tinha horror àquelas reuniões. E era atleticano doente, diametralmente oposto ao tio Tonico, que era americano e jogava como beque na esquadra do Coelho. Os dois só tinham uma coisa em comum, eram solteirões convictos e, com isto, moraram com a vovó durante toda a vida dela. Mas, apesar das diferenças, os dois se davam muito bem, embora tivessem tudo separado. Cada um mantinha seu próprio orquidário no amplo quintal da casa, em meio a bananeiras, laranjeiras, limoeiros, abacateiro, caramboleira, mamões, chuchus, tomates, galinha e pintinhos aos montes. Era uma típica casa de avó, delícia encravada no bairro Funcionários.
Lúcia e eu brincávamos no passeio, jogando maré e bente-altas, recomendados para não irmos para o meio da rua, cujos postes de iluminação a dividiam em duas.  Eram imensos postes de ferro onde, num descuido, dei uma cabeçada quando corria pelo meio da rua pedregosa, soltando pandorga, nome gaúcho do brinquedo papagaio, conhecido em São Paulo como pipa. Àquela época, tínhamos vindo do Rio Grande do Sul para Belo Horizonte e ainda carregávamos umas expressões locais como pandorga e bolicho: botequim de rua.
No fim das tardes de segunda-feira, nós dois íamos de mãos dadas até a Praça do ABC, que tinha outro nome e do qual não me lembro mais, para acompanhar a.montagem de uma enorme tela entre os postes do centro da Avenida Afonso Pena para exibir, à noite, o Cine Grátis. Fazia parte do ritual da montagem, a cobertura com capuzes de lonas pretas de todas as lâmpadas da praça para criar um blecaute artificial para a exibição dos filmes. Era um programação mensal para a meninada do bairro e da vizinhança.
O pãozinho da manhã era comprado na padaria do Sêo Tibúrcio, no final da rua Aimorés, esquina de Contorno com Paraúna onde, nos canteiros centrais, a molecada disputava campeonatos de futebol, geralmente jogado com bolas de borracha ou de meia. Do outro lado da Avenida Contorno, havia um córrego de águas límpidas e transparentes onde, nos dias quentes, nos refrescávamos ou pescávamos uns lambarizinhos. Infância pobre e muito feliz.
Lembro-me de construir um carrinho de rolimã com o qual andei por todo o bairro nos passeios de pedras grandes e irregulares.
A pedido da Lulu vou aproveitar o blog para contar umas historinhas sobre a minha vida com a sua mãe Lúcia, minha irmã, começando pela nossa infância muito bem vivida em Porto Alegre, Ijuí, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.
                                                                                                                            
A respeito do título, copiei o nome de uma canção do Pacífico Mascarenhas, já postada  aqui no blog, que pode ser ouvida como música de fundo das leituras.


FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Os loucos às vezes se curam. Os imbecis nunca. Oscar Wilde

sábado, 23 de junho de 2012

DO RIO SEMPRE BOAS LEMBRANÇAS

Num fim de semana destes, fui ao Rio para participar de um Seminário promovido pelos Partners of the Américas, denominado “Brazil Connect 2012”. Uma ótima oportunidade de reviver as delícias do Rio, apesar da chuva constante, do frio e da jornada rigorosa do evento. Lá, sempre vale a pena, pois o astral é soberano.
Logo na chegada ao hotel, Rio Othon Palace, em plena Avenida Atlântica, vêm as lembranças do menino que morava numa pensão da Rua Constante Ramos, nos anos 1940, ali pertinho. Saio para dar uma volta nostálgica e me recordo de que a Avenida Atlântica tinha uma só pista, entre os passeios decorados com ondas na praia e os prédios ainda insipientes do lado continental. Uma simplicidade contrastando com as quatro pistas do aterro de hoje, onde, ainda viva, a Cantina do Lucas faz presença no Posto Seis. Na época, era, talvez, o único restaurante à beira-mar na famosa praia. Lembro-me de que uma única vez entramos no restaurante, num domingo, para um almoço rápido. Era muito caro para o papai, primeiro tenente médico do Exército Brasileiro. Recordo-me que pedimos macarrão, bem baratinho. De qualquer maneira, entrávamos pela primeira vez num restaurante, a Lúcia e eu, que marcamos aquele momento como um dos mais felizes de nossa infância carioca.
Mais uns metros e cheguei à Avenida Nossa Senhora de Copacabana, onde passeávamos, aos domingos, até o Lido. Bons tempos aqueles quando a cidade não conhecia drogas nem bandidos.
De uma outra feita, já casado e em férias num hotel, em Ipanema, resolvemos dar uma volta na praia, como todo bom mineiro, para ver e sentir o mar. Depois de uma voltinha, sentamo-nos num banquinho de pedra e começamos a sonhar com a aposentadoria, de como seria bom morar no Rio, já mais velhos. A cidade é ideal para esta fase da vida onde, só de sair de casa para a rua, já se faz um programa. Decidimos, naquele ímpeto, garantir uma aposentadoria feliz e repousante, comprando um apartamento na cidade. Procuramos um corretor de imóveis que nos indicou um funcionário, Sr. Leão, para ser nosso atendente em busca do sonhado apê.  Com isto, viajei diversas vezes ao Rio para ver as opções que surgiam, e que não nos atendiam. Até que, num belo dia, ele me ligou meio sem jeito, dizendo que havia arrumado um apartamento novo, zero km, que ficaria pronto no meio do ano, só que não era na quadra da praia, como os cariocas denominam os imóveis de frente para o mar. Disse-me que estava meio sem graça em me oferecer, mas, de qualquer forma, queria tentar. Aí, perguntei a ele: E está muito longe da praia, Seo Leão?
Ah, doutor, está a uns quatro quilômetros mais ou menos, respondeu ele, todo encabulado. Puxa, Seo Leão, eu moro a 450 km da praia e se for possível chegar a cinco, vai ser ótimo!
E ele muito animado, marcou dia e hora para a visita. Resultado: compramos o apartamento no Jardim Botânico e lá habitamos nas férias e em outras oportunidades, durante quinze anos. Foi uma ótima compra que serviu muito bem aos meus filhos e a toda a família.
Hoje, aposentado e passeando pelas ruas de Copacabana, lembrei-me da história e andei mais uns quarteirões para voltar ao hotel a tempo da primeira palestra. Não, sem antes, comer uns camarões fritos empanados e tomar um chope gelado (b&w, o carioca) num restaurante à beira-mar.
Assim, durante dois dias permanecemos fechados num dos salões de convenções do excelente hotel até o final da maratona, que culminou com um jantar, no sábado, no restaurante Marius, no Leme. Esse restaurante foi onde, tempos atrás, o Juarez e a Ana Lúcia, padrinhos do Pedro, meu filho, nos ofereceram um almoço de despedida, às vésperas da ida dele, pela primeira vez, aos Estados Unidos. Era uma churrascaria convencional, de rodízio, com decoração bem feita e sem maiores novidades. No entanto, o Marius de hoje é uma loucura! A decoração é um museu de antiguidades dependuradas à farta por todo o teto, com milhares de peças de carros, pratos, copos, batinas antigas, alambiques, moedores de café, tacos de golfe, luvas de boxe, instrumentos musicais, enfim, uma babilônia impossível de descrever. Vale a pena conhecer e saborear as deliciosas carnes, molhos e temperos do requintado bufê do Marius, onde comemos até ovas de atum imitando o famoso caviar Molossol.
Ah! Para o Dia das Mães, domingo, dia 13, comprei um relógio de cabeceira para a tia Marina.
No Rio de Janeiro, em 13/05/2012

FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
“O cara só é sinceramente ateu quando está bem de saúde.”
Millôr Fernandes





domingo, 17 de junho de 2012

                                        FESTIVAL DE BOSSA NOVA EM ARARAQUARA

Lá se vão 48 anos da minha participação num festival organizado pela Faculdade de Filosofia de Araraquara, interior sul de São Paulo. Com os violões, clavieta e muita disposição, pegamos o ônibus em Ribeirão Preto: o João Stamato, o Fred, o Marquinhos e eu. Nem havíamos ensaiado, mas, como cantávamos todos os dias e noites, sem parar, tínhamos certeza de que apresentaríamos o que havia de melhor sobre o novo estilo da música brasileira, a bossa nova.
Os promotores do evento hospedaram-nos numa daquelas pensões, muito comuns nas cidades ditas universitárias pelo Brasil afora, onde os estudantes se sentiam em casa, pois tinham cama, comida e roupa lavada, como oferecem hoje os apart-hotéis, só que num ambiente familiar. Geralmente, aquelas pensões eram abertas em casas antigas onde as famílias, desmembradas pela fuga dos filhos para faculdades em outras cidades, estados, países, ofereciam comidinha caseira, com sobremesas de doces de frutas; quartos amplos com camas feitas e os serviços de limpeza, a cargo de uma diarista - na maioria das vezes, menina da periferia-, que também obsequiava os hóspedes/rapazes/estudantes, com um sexo escondido e casual. Eles a sorteavam entre os dias da semana para que cada um se mantivesse em dia quanto ao tesão irrefreado daquela  juventude sadia.
Já instalados, nossa anfitriã informou-nos que ainda chegariam mais três, vindos de São Paulo. No armazém ao lado, compramos alguns engradados de cervejas, queijos e latas de salsicha, mantendo a geladeira da casa sempre bem fornida até o dia da partida. Já tomávamos algumas no fim da tarde, quando chegaram os três paulistanos: um tal de Chico Buarque, um violonista desconhecido apelidado Toquinho e um estrangeiro, parecia boliviano, radicado em São Paulo, que atendia pelo nome de Taiguara.
Fizemos as apresentações de praxe e os três se incorporaram à happy-hour cervejística. Em minutos, todos os violões já estavam desembainhados e a cantoria começou. Cada um mais louco para mostrar o que apresentaria no festival. Um verdadeiro sarau.
Cantamos, entre outras, A banda, Canto de Ossanha e Berimbau, Helena/Helena, Pedro  Pedreiro, Pra que chorar, Vai negão, Olé-Olá, O universo do teu corpo, O amor em paz, João XXIII, Insensatez, Coisa mais bonita, revezando nossas vozes e violões.
E, naquela orgia musical, duas músicas se destacaram: uma, pelo ineditismo da letra do Chico, chamada João XXIII, em homenagem ao Papa, naturalmente; e a outra, do Taiguara, pela animação do estribilho que dizia: ...Vai negão, sambando pela rua de copo na mão, sem parar, sambando pela rua até o sol raiar... E raiou mesmo. Praticamente, desmaiamos depois de tanto beber e cantar até às seis da manhã. Dormimos o dia inteiro. À noite, seria a abertura do Festival.  Partimos a pé para o anfiteatro da Universidade, ainda sonolentos e com caras de ressaca. Parecíamos uns zumbis perdidos pelas ruas da cidadezinha.
Tudo combinado, eu fiz a abertura com alguns solos de violão das músicas do Baden Powell, Consolação e O Astronauta; cantei Moça-Flor, do Bebeto, e apresentei o próximo: Chico Buarque. Ele tocou e cantou Olé-Olá e A banda, sendo efusivamente aplaudido e ainda cantando mais umas três. Em seguida, chamou o Toquinho, que apresentou solos belíssimos ao violão de umas músicas do seu professor Paulinho Nogueira, anunciando depois o Taiguara, que cantou Helena Helena, super sucesso, e O universo do teu corpo, também aplaudidíssimo. O Taiguara, então, nos chamou para encerrarmos com o Vai, negão. A galera levantou-se e aderiu, formando um grande coral, tipo apoteótico, durante mais de quinze minutos.
No dia seguinte, na estação do ônibus, um bar/padaria na praça central da cidade, sentamo-nos numas caixas de frutas, largadas na calçada, e trocamos mais alguns conhecimentos musicais. Passei para o Toquinho o solo da música Viagem, do João de Aquino e do Paulo Cezar Pinheiro e ele me ensinou um solo belíssimo de Festival of Strings, música standard americana. O Chico, fumando e com o copo de cerveja na mão, ainda nos premiou com um repeteco, a nosso pedido, de Olé-Olá e, na porta dos ônibus -  um para São Paulo, outro pra Ribeirão -, nos despedimos, entoando pela última vez a Vai negão...
E viva a música!
Belo Horizonte, junho/2012

Lá em cima, da esquerda para a direita, Roberto, Marquinhos, João Stamato e Fred, cantando “Pra que chorar”, arranjo de Os Cariocas.

FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMAS
Si nada nos salva de la muerte, al menos que el amor nos salve de la vida. Pablo Neruda
                                    FESTIVAL DE BOSSA NOVA EM ARARAQUARA

Lá se vão 48 anos da minha participação num festival organizado pela Faculdade de Filosofia de Araraquara, interior sul de São Paulo. Com os violões, clavieta e muita disposição, pegamos o ônibus em Ribeirão Preto: o João Stamato, o Fred, o Marquinhos e eu. Nem havíamos ensaiado, mas, como cantávamos todos os dias e noites, sem parar, tínhamos certeza de que apresentaríamos o que havia de melhor sobre o novo estilo da música brasileira, a bossa nova.
Os promotores do evento hospedaram-nos numa daquelas pensões, muito comuns nas cidades ditas universitárias pelo Brasil afora, onde os estudantes se sentiam em casa, pois tinham cama, comida e roupa lavada, como oferecem hoje os apart-hotéis, só que num ambiente familiar. Geralmente, aquelas pensões eram abertas em casas antigas onde as famílias, desmembradas pela fuga dos filhos para faculdades em outras cidades, estados, países, ofereciam comidinha caseira, com sobremesas de doces de frutas; quartos amplos com camas feitas e os serviços de limpeza, a cargo de uma diarista - na maioria das vezes, menina da periferia-, que também obsequiava os hóspedes/rapazes/estudantes, com um sexo escondido e casual. Eles a sorteavam entre os dias da semana para que cada um se mantivesse em dia quanto ao tesão irrefreado daquela  juventude sadia.
Já instalados, nossa anfitriã informou-nos que ainda chegariam mais três, vindos de São Paulo. No armazém ao lado, compramos alguns engradados de cervejas, queijos e latas de salsicha, mantendo a geladeira da casa sempre bem fornida até o dia da partida. Já tomávamos algumas no fim da tarde, quando chegaram os três paulistanos: um tal de Chico Buarque, um violonista desconhecido apelidado Toquinho e um estrangeiro, parecia boliviano, radicado em São Paulo, que atendia pelo nome de Taiguara.
Fizemos as apresentações de praxe e os três se incorporaram à happy-hour cervejística. Em minutos, todos os violões já estavam desembainhados e a cantoria começou. Cada um mais louco para mostrar o que apresentaria no festival. Um verdadeiro sarau.
Cantamos, entre outras, A banda, Canto de Ossanha e Berimbau, Helena/Helena, Pedro  Pedreiro, Pra que chorar, Vai negão, Olé-Olá, O universo do teu corpo, O amor em paz, João XXIII, Insensatez, Coisa mais bonita, revezando nossas vozes e violões.
E, naquela orgia musical, duas músicas se destacaram: uma, pelo ineditismo da letra do Chico, chamada João XXIII, em homenagem ao Papa, naturalmente; e a outra, do Taiguara, pela animação do estribilho que dizia: ...Vai negão, sambando pela rua de copo na mão, sem parar, sambando pela rua até o sol raiar... E raiou mesmo. Praticamente, desmaiamos depois de tanto beber e cantar até às seis da manhã. Dormimos o dia inteiro. À noite, seria a abertura do Festival.  Partimos a pé para o anfiteatro da Universidade, ainda sonolentos e com caras de ressaca. Parecíamos uns zumbis perdidos pelas ruas da cidadezinha.
Tudo combinado, eu fiz a abertura com alguns solos de violão das músicas do Baden Powell, Consolação e O Astronauta; cantei Moça-Flor, do Bebeto, e apresentei o próximo: Chico Buarque. Ele tocou e cantou Olé-Olá e A banda, sendo efusivamente aplaudido e ainda cantando mais umas três. Em seguida, chamou o Toquinho, que apresentou solos belíssimos ao violão de umas músicas do seu professor Paulinho Nogueira, anunciando depois o Taiguara, que cantou Helena Helena, super sucesso, e O universo do teu corpo, também aplaudidíssimo. O Taiguara, então, nos chamou para encerrarmos com o Vai, negão. A galera levantou-se e aderiu, formando um grande coral, tipo apoteótico, durante mais de quinze minutos.
No dia seguinte, na estação do ônibus, um bar/padaria na praça central da cidade, sentamo-nos numas caixas de frutas, largadas na calçada, e trocamos mais alguns conhecimentos musicais. Passei para o Toquinho o solo da música Viagem, do João de Aquino e do Paulo Cezar Pinheiro e ele me ensinou um solo belíssimo de Festival of Strings, música standard americana. O Chico, fumando e com o copo de cerveja na mão, ainda nos premiou com um repeteco, a nosso pedido, de Olé-Olá e, na porta dos ônibus -  um para São Paulo, outro pra Ribeirão -, nos despedimos, entoando pela última vez a Vai negão...
E viva a música!
Belo Horizonte, junho/2012

Lá em cima, da esquerda para a direita: Roberto, Marquinhos, João Stamato e Fred, cantando "Prá que chorar",

 FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
...Vamos a vivir porque para dormir hay siglos... Arriba, abajo, siempre juntos, para dentro.

Esta frase é um brinde caribenho que bem representa a vontade daquele povo alegre. É uma lição de vida.









domingo, 10 de junho de 2012

O ROTWEILLER QUE CUSPIA LUZ                 
                                     
Ouvi, hoje, mais uma história interessante. E só poderia ter sido contada pelo Zuza, que é o personagem central de todas as histórias extravagantes e curiosas que conto por aqui. Principalmente as que falam sobre cachorros.
Hoje, em meio a nossa esclarecedora prosa sabatina, ouvi do Zuza mais uma nova. Já contei a do Iuri, o cachorrinho do Caio que, perdido na rua, foi parar num rendez-vous, onde o Zuza o encontrou com um lacinho de fita rosa no pescoço, na sala da cafetina e no colo de uma das garçonières. As meninas, inclusive, haviam descoberto que ele era roncolho. E a do Barão, outro cachorro que ele “deu” pro caseiro do sítio sem, contudo, deixar de continuar de manter o bicho. Ele ficava revoltado de ter que, inclusive, vaciná-lo. Um absurdo, dizia ele.
Assim, de histórias e excentricidades sobre cachorros, o Zuza é o campeão.
A Sônia, mulher dele, já se cansara de ir para o sítio todos os fins de semana e devia ter suas razões. Ele, viciado por mato, cervejas e vinhos, mesmo isolado, não desperdiçava qualquer feriado ou sábados e domingos com chuvas de granizo, frio, geada ou o que fosse. Com razão, pois o sítio, em Santa Luzia, era realmente lindo: num alto de morro, uma casa de madeira com lareira e tudo mais, incorporando toda a beleza da natureza. Não poderia desperdiçar mesmo.
Segundo ele, certa tarde, sozinho e bem animado com as cervejas e os vinhos, sentou-se no gramado bem no alto à frente da casa, deliciando-se com a vista deslumbrante da matriz de Santa Luzia, em silhueta com o sol poente. Assobiou para o cachorro de guarda, o Balboa, um feroz Rotweiller que havia comprado para substituir o John Wayne, então, já velho e cansado.  Tão logo Zuza chegava ao sítio, o Balboa se colava nele e o acompanhava em todas as andanças, obedecendo-lhe cegamente qualquer ordem, enfim, um legítimo cão de guarda do dono. E, naquela tarde, aboletou-se fielmente ao lado do dono. Só para se manter em contato com o mundo exterior, Zuza colocou seu celular na grama, ao lado, para atender a qualquer emergência. E, ali,  ficaram os dois, encantados com o por do sol, nenhuma palavra ou grunhido trocado até que o Zuza ouviu um ruído diferente. Era como o som de uma máquina esmagando alguma coisa. Olhou em volta, nada diferente a não ser as alamandas amarelas, cor-de-rosa e vermelhas, enfeitando a cerca; um touro lá embaixo, na fazenda do Pedro Paulo; e um urubu faceiro no céu. Na casa, nada de novo.  Num relance, percebeu um brilho de luz, ao lado, de onde vinha o barulho estranho. E qual não foi sua supresa ao deparar com o fiel Balboa mastigando o celular deixado na grama. Feliz, com o celular aos frangalhos e a boca toda iluminada pelos ácidos contidos na bateria do celular, o cachorro encarou o Zuza como se dissesse: “Tá vendo? Eu te protejo contra tudo e contra todos”. Conclusão do Zuza: o Balboa sobreviveu, mas ficou com um hálito terrível.
Quando ele contava, lembrei-me do “Auto da compadecida” do mestre Ariano Suassuna, onde ele conta que havia um cavalo que descagava ouro. Acho que faria uma boa dupla com o cachorro que cuspia luz.

Belo Horizonte, junho/2012.

FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Ressentimento é um copo de veneno que você toma pensando que vai prejudicar o outro. William Shakespeare
Foto Google

sábado, 2 de junho de 2012

                                                 UMA AVENTURA TRANSOCEÂNICA
Um dia, resolvemos vender um relógio de bolso antigo da marca Omega, que havíamos comprado de um colecionador em Belo Horizonte. Era uma preciosidade, com acabamento em lápis lazúli, máquina funcionando, pendent e fundo de ouro maciço, enfim, uma jóia rara e curiosa.
Assim, comecei ofertando para amigos e para antiquários mineiros, que não se interessaram. Ofereci, então, para uns conhecidos paulistas e brazilienses, também sem sucesso. Alguns até se interessaram, mas os valores que ofereciam nem de perto chegavam ao que nós havíamos investido, nem muito menos perto do valor de mercado que havíamos pesquisado, em torno de uns US$ 20,000.
Naquela época, apareceu em Belo Horizonte um americano de Chicago, comprador de relógios antigos, que se anunciava num jornal de grande circulação como “comprador de relógios antigos para qualquer uso: bolso, pulso ou parede.” No anúncio dizia ainda que faria uma avaliação e, se tivesse interesse, faria uma oferta de compra. Informava ao final que ele estaria na cidade nos dias tais e quais, hospedado no hotel X, contatos através do telefone Y.
Um amigo meu, colecionador de Belo Horizonte que conhecia o relógio e o comprador, telefonou-me propondo marcar uma entrevista com o gringo na casa dele. Informou-me que ele ficaria como intermediário, para dar garantia local ao negócio. Topei na hora. Na data aprazada, levei o relógio no estojo com marca de fábrica, também catalogado, e o americano começou o exame das peças com uma lupa. Sobre o estojo falou, de cara, que o forro estava muito gasto e que a tranquinha estava meio agarrada,  dificultando para abrir. Pegou o relógio e o abriu, verificando que tinha a inscrição de um nome no verso da caixa de ouro, que imaginamos ser do primeiro proprietário, pois estava bordada com gravação caligráfica, numa letra rebuscada. Franziu o cenho. E continuou apontando pequenos defeitos como uma lasquinha milimétrica no lápis lazúli, só visível com a lupa; disse ainda que este acabamento estava meio gasto e ao final, com total desprezo, cara de deboche, colocou o relógio de volta no estojo, quase o jogou sobre a mesa, olhou-me com a lupa ainda pregada no olho esquerdo e falou categórico:  “Pelas peças, senhor, neste estado, posso oferecer US$ 1,000, para não perder a viagem. É pegar ou largar.” Agradeci a “generosa” oferta e me despedi. Quando já estava na porta ele falou, novamente:  “Senhor, posso dar-lhe US$ 1,500 que tenho aqui comigo em espécie.” E foi tirando do bolso e contando umas notas de US$ 100.
Agradeci novamente e fui embora.
Naquela busca por preço, havia encontrado alguns catálogos de peças registradas para colecionadores e em dois deles, constava um irmão do tal relógio, com fotos, descrição e valor aproximado de mercado, que era por quanto eu estava tentando vender.
Mas, surpresa, num noticiário na TV, prestei atenção numa matéria que comentava sobre os leilões da casa Sotheby`s, de Londres, na Inglaterra, que os promovia anualmente, com peças garimpadas pelo mundo afora. Empenhei-me muito para conseguir o telefone da casa leiloeira e liguei para saber sobre o interesse deles e qual seria a data mais próxima dos leilões. Colocaram-me ao telefone com a responsável por relógios que me informou que o próximo leilão seria dentro de dois meses, que tinham muito interesse na peça sim, e que eu devia entregar-lhes o relógio até o dia tal, a tempo da preparação prévia do evento.
Comecei então a me virar para viabilizar o negócio. Fui informado de que uma sobrinha estava passando uma temporada em Brighton, perto de Londres que, informada sobre minha intenção ofereceu-se para me ajudar no que fosse possível. Combinamos tudo certinho mas, no meio das tratativas, ela voltou para Belo Horizonte, deixando uma amiga, na casa onde ela esteve hospedada, encarregada da missão. Liguei para ela que se prontificou a ir a Londres quando eu precisasse para pegar o relógio comigo ou com alguém que eu indicasse e entregá-lo na Sotheby`s à encarregada de relógios. Esta funcionária, uma senhora com quem falei diversas vezes, era uma típica inglesa no sotaque e nos hábitos, que sempre me atendeu com muita atenção e simpatia.
Com isto, só faltava arrumar um portador pois não compensaria levá-lo pessoalmente.
Na época, eu trabalhava na Assessoria de Comunicação da Secretaria da Fazenda e soube que, coincidentemente, um colega meu, funcionário graduado da Secretaria, estaria viajando a Londres naqueles dias para uma reunião na capital inglesa. Pura sorte.
A viagem dele coincidia com a data limite para entrega da peça. Ele era um amigo de longa data, com quem tinha total liberdade, assim, contei a ele a história e pedi o favor de levar a peça. Esclareci que ele não teria trabalho algum e que era só para entregar para uma mocinha inglesa de nome tal, que se identificaria e pegaria com ele no hotel.  Muito cordialmente ele me atendeu. Assim, embrulhei a raríssima peça e a despachei com ele.
Em resumo, os trâmites em Londres correram tão bem que, em dez dias recebi na minha casa o catálogo dos leilões daquele ano da Sothebys, onde o já famoso relógio constava de uma das fotos que ilustrava a capa. Fiquei feliz com as especificações da peça que remetiam a um lote de apenas vinte relógios, peças únicas, que haviam sido montados para uma feira industrial realizada em Paris, em 1922, com o valor estimado em US$ 20,000 para abertura dos lances.
Ato contínuo, recebi um telefonema de Chicago do comerciante americano citado, dizendo que havia recebido o catálogo e queria me oferecer US$ 10,000 para comprar o meu direito para entrar no leilão. Mais uma vez não aceitei a oferta dele e resolvi correr o risco pois a situação já estava muito emocionante para não enfrentá-la até o fim.  
Ao final, fui informado pela funcionária da Sotheby`s que a peça havia sido arrematada depois de uma ferrenha disputa entre um preposto da fábrica suíssa e um colecionador londrino, que a arrematou com a oferta final de US$ 25,000.
Foi uma aventura transoceânica formidável, que resultou numa ótima venda, sem trocar  nenhum papel com qualquer pessoa, sem precisar reconhecer firmas ou autenticar documentos, numa época em que não havia internet, muito menos telefones particulares/celulares
Comento, agora, com muita alegria esta experiência gostosa.
Belo Horizonte/abril 2012.



FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
Se você acha a aventura perigosa, tente a rotina. É mortal! (Paulo Coelho)

Fotos: Pedro Brandão