sábado, 23 de janeiro de 2016


O ERUDITO AFAVELADO

Pessoa de fino trato, dotado de ótima cultura geral construída nas mesas de estudo no famoso Colégio Santo Inácio de Loyola, no Rio, onde aprendeu que a maior virtude do homem é a retidão de caráter; conhecedor e apreciador da música clássica, com habilidade para o piano, inclusive com partitura; colecionador de livros que compõem uma ampla biblioteca lida, de eclética literatura; piloto brevetado como presente do irmão querido, que acreditava nos sonhos e no desejo daquele jovem de voar para as grandes aventuras até  transplanetárias e, hoje, com hábitos discretos e bem de vida, deparou-se com uma situação inusitada. No domingo, o também ex-seminarista recebeu a visita do filho mais velho que, de mala e cuia e com dois dos três filhos a tiracolo, anunciou:
_ “Pois é, pai, resolvemos passar um tempo com vocês, aqui na sua casa. Será que dá?”
 _ “Lógico!”- respondeu o antigo e acolhedor sibarita.
Feliz, e ao mesmo tempo muito intrigado, logo chamou a mulher para dar a boa-nova:
 _ “Sônia Maria, o Caio e os meninos vão passar uma temporada aqui conosco. Arrume acomodação pra todos e não se preocupe, porque os meninos só vão dormir aqui nos fins-de-semana. Durante a semana, vão ficar com a mãe”.
Tratava-se de uma boa encrenca, porque o filho acabara de sair de casa, onde a incompatibilidade de gênios com a esposa provocara a súbita separação. O lado bom seria a oportunidade que os avós teriam de uma melhor e maior convivência com os netinhos, que são meio encapetados, é certo, mas encantadores! Há ainda que se considerar a ocorrência, justo nessa fase da vida, quando aqueles avós, como tantos outros casais maduros, acreditavam que filhos criados significavam a chance de poder diminuir suas moradas, trocando-as por um apartamento menor: um quarto pra ele, outro pra ela e mais um quartinho quebra-galho, uma cozinha pequena, dois banhos, sala conjugada, duas vagas na garagem, e só. Neste caso, que nada! Embora o apartamento tenha se mostrado suficiente para os dois, as surpresas passaram a acontecer e eis o filhão de volta com as crianças.
_“Só nos fins-de-semana, viu, mãe?”- reforçou ele.
Assim, o avô compreensivo voltou a dividir o quarto com Sônia Maria, que acabou cedendo o dela. Coisas da vida, que, mesmo assim, ainda permitiram ao intelectual manter a própria rotina: ouvir Bach e Haendel, à tarde, sentado na varanda, durante a leitura do best seller da vez, regada com um bom vinho, salgadinhos e muitas cervejas geladas. Tudo na mais perfeita ordem para o sistemático vovô.
Mas as surpresas não terminaram com o retorno do filho, eis que a filha querida, residente no interior, comunicou pelo telefone que viria passar as férias em Belo Horizonte, com o marido e os dois filhos: uma mocinha e um recém-nascido.
_ “Mas, o Felipe é só no fim-de-semana, viu, pai?” – explicou, referindo-se ao marido.
Legal! Chamou de novo a mulher, contou-lhe a boa nova e recomendou:
_ “Arrume acomodação pra mais quatro. A casa vai ficar cheia e vai ser uma festa!”
Obediente e rápida, Sônia correu à casa da irmã, pegou dois colchões emprestados e  acomodou o casal na sala, o recém-nascido num bercinho, que estava no quarto/depósito, e a neta-mocinha, no corredor, num colchão reserva. Todos ficaram bem.
Cabreiro, o velho viu-se obrigado, naqueles dias, a se vestir em casa com umas roupinhas  mais comportadas e a pedir licença por todo lado por onde passava. Observou, ainda, que o estoque dos vinhos estava baixando rapidamente. As cervejas? Quando ainda achava alguma na geladeira, estava quente! Como bebem esses caras!- pensava.
Agora, diante de tanta concessão, as rotinas continuam, mas com uma nova ordem: Bach e Haendel foram substituídos por Xuxa, Angélica e Os Saltimbancos e a varanda, lugar tão aprazível para o final da tarde, está ocupada por brinquedos, bolas, jogos e roupas.
Bem cedinho, escuro ainda, levanta-se e, pé-ante-pé, depois de uma rápida chuveirada, para não fazer barulho, e com a lanterna na mão, vai catando sua roupa colocada em cima do sofá da sala. Os armários estão lotados. E os sapatos? Sabe lá! Devem estar na área de serviço. Tudo bem. Veste-se com dificuldade na área mesmo e sai pela porta de serviço, trancando-a pelo lado de fora com todo cuidado. Lépido, desce pelo elevador e, na garagem, um choque. Vai ter que empurrar três carros que estão na frente do seu, pois, educadamente, ficou com a última das vagas. Torceu o nariz.
Lembrando-se do lauto breakfast que a Sônia lhe serve toda manhã: ovos mexidos, salsicha, pãozinho estalando de quente, belo suco de laranja feito na hora e aquela pimentinha esperta, opta por um cafezinho em pé, na Savassi. Almoça num serv-serve e anima-se, ao voltar no fim da tarde, lembrando do barulho quando abre a latinha de Skol  e da história fascinante do livro que o aguarda.
Já em casa, cansado e submetido, descalça os sapatos e as meias, enfia os pés nos confortáveis e gastos chinelos e embrulha-se numa velha jaqueta com a intenção, simples,  de ficar recolhido num canto qualquer, silencioso, para ler e beber.
Distante, um observador imagina a figura do velho piloto, grisalho e com o brevet vencido, posto como um embrulho numa das cadeiras da varanda entre os varais de roupas estendidas e com um livro entreaberto nas mãos, envolto num monte de latas de refrigerante espalhadas, um baralhinho de bichos e um quebra-cabeça, papéis amarrotados de balas e chocolates, consumidos durante o dia.  É quase possível assistir ao erudito afavelado, então encantado com a felicidade dos netos a correr pela casa, esboçar um sorriso, enquanto ouve ao fundo, o Só no sapatinho.
Roberto H. Brandão – outubro/2006   
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS

“O cinema é o espelho das artes.” Ettore Scola

Na foto,em primeiro plano, o citado erudito, já grisalho, e demais componentes da história.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário