
O ERUDITO
AFAVELADO
Pessoa de fino trato, dotado de ótima cultura
geral construída nas mesas de estudo no famoso Colégio Santo Inácio de Loyola,
no Rio, onde aprendeu que a maior virtude do homem é a retidão de caráter;
conhecedor e apreciador da música clássica, com habilidade para o piano,
inclusive com partitura; colecionador de livros que compõem uma ampla
biblioteca lida, de eclética literatura; piloto brevetado como presente do
irmão querido, que acreditava nos sonhos e no desejo daquele jovem de voar para
as grandes aventuras até transplanetárias
e, hoje, com hábitos discretos e bem de vida, deparou-se com uma situação
inusitada. No domingo, o também ex-seminarista recebeu a visita do filho mais
velho que, de mala e cuia e com dois dos três filhos a tiracolo, anunciou:
_ “Pois é, pai, resolvemos passar um tempo com
vocês, aqui na sua casa. Será que dá?”
_ “Lógico!”- respondeu o antigo e
acolhedor sibarita.
Feliz, e ao mesmo tempo muito intrigado, logo
chamou a mulher para dar a boa-nova:
_ “Sônia Maria, o Caio e os meninos vão
passar uma temporada aqui conosco. Arrume acomodação pra todos e não se
preocupe, porque os meninos só vão dormir aqui nos fins-de-semana. Durante a
semana, vão ficar com a mãe”.
Tratava-se de uma boa encrenca, porque o filho
acabara de sair de casa, onde a incompatibilidade de gênios com a esposa
provocara a súbita separação. O lado bom seria a oportunidade que os avós
teriam de uma melhor e maior convivência com os netinhos, que são meio
encapetados, é certo, mas encantadores! Há ainda que se considerar a
ocorrência, justo nessa fase da vida, quando aqueles avós, como tantos outros
casais maduros, acreditavam que filhos criados significavam a chance de poder
diminuir suas moradas, trocando-as por um apartamento menor: um quarto pra ele,
outro pra ela e mais um quartinho quebra-galho, uma cozinha pequena, dois
banhos, sala conjugada, duas vagas na garagem, e só. Neste caso, que nada!
Embora o apartamento tenha se mostrado suficiente para os dois, as surpresas
passaram a acontecer e eis o filhão de volta com as crianças.
_“Só nos fins-de-semana, viu, mãe?”- reforçou
ele.
Assim, o avô compreensivo voltou a dividir o
quarto com Sônia Maria, que acabou cedendo o dela. Coisas da vida, que, mesmo
assim, ainda permitiram ao intelectual manter a própria rotina: ouvir Bach e
Haendel, à tarde, sentado na varanda, durante a leitura do best seller da vez, regada com um bom vinho,
salgadinhos e muitas cervejas geladas. Tudo na mais perfeita ordem para o
sistemático vovô.
Mas as surpresas não terminaram com o retorno
do filho, eis que a filha querida, residente no interior, comunicou pelo
telefone que viria passar as férias em
Belo Horizonte, com o marido e os dois filhos: uma mocinha e um recém-nascido.
_ “Mas, o Felipe é só no fim-de-semana, viu,
pai?” – explicou, referindo-se ao marido.
Legal! Chamou de novo a mulher, contou-lhe a
boa nova e recomendou:
_ “Arrume acomodação pra mais quatro. A casa
vai ficar cheia e vai ser uma festa!”
Obediente e rápida, Sônia correu à casa da
irmã, pegou dois colchões emprestados e acomodou
o casal na sala, o recém-nascido num bercinho, que estava no quarto/depósito, e
a neta-mocinha, no corredor, num colchão reserva. Todos ficaram bem.
Cabreiro, o velho viu-se obrigado, naqueles
dias, a se vestir em casa com umas roupinhas mais
comportadas e a pedir licença por todo lado por onde passava. Observou, ainda,
que o estoque dos vinhos estava baixando rapidamente. As cervejas? Quando ainda
achava alguma na geladeira, estava quente! Como bebem esses caras!- pensava.
Agora, diante de tanta concessão, as rotinas
continuam, mas com uma nova ordem: Bach e Haendel foram substituídos por Xuxa, Angélica e Os
Saltimbancos e a varanda, lugar
tão aprazível para o final da tarde, está ocupada por brinquedos, bolas, jogos
e roupas.
Bem cedinho, escuro ainda, levanta-se e,
pé-ante-pé, depois de uma rápida chuveirada, para não fazer barulho, e com a
lanterna na mão, vai catando sua roupa colocada em cima do sofá da sala. Os
armários estão lotados. E os sapatos? Sabe lá! Devem estar na área de serviço.
Tudo bem. Veste-se com dificuldade na área mesmo e sai pela porta de serviço,
trancando-a pelo lado de fora com todo cuidado. Lépido, desce pelo elevador e,
na garagem, um choque. Vai ter que empurrar três carros que estão na frente do
seu, pois, educadamente, ficou com a última das vagas. Torceu o nariz.
Lembrando-se do lauto breakfast que a Sônia lhe serve toda manhã: ovos
mexidos, salsicha, pãozinho estalando de quente, belo suco de laranja feito na
hora e aquela pimentinha esperta, opta por um cafezinho em pé, na Savassi.
Almoça num serv-serve e anima-se, ao voltar no fim da tarde,
lembrando do barulho quando abre a latinha de Skol e da história fascinante do livro que
o aguarda.
Já em casa, cansado e submetido, descalça os
sapatos e as meias, enfia os pés nos confortáveis e gastos chinelos e
embrulha-se numa velha jaqueta com a intenção, simples, de ficar recolhido num canto qualquer,
silencioso, para ler e beber.
Distante, um observador imagina a figura do
velho piloto, grisalho e com o brevet vencido,
posto como um embrulho numa das cadeiras da varanda entre os varais de roupas
estendidas e com um livro entreaberto nas mãos, envolto num monte de latas de
refrigerante espalhadas, um baralhinho de bichos e um quebra-cabeça, papéis
amarrotados de balas e chocolates, consumidos durante o dia. É quase possível assistir ao erudito
afavelado, então encantado com a felicidade dos netos a correr pela casa,
esboçar um sorriso, enquanto ouve ao fundo, o Só
no sapatinho.
Roberto H. Brandão –
outubro/2006
FRASES, PENSAMENTOS E AFORISMOS
“O cinema é o espelho das
artes.” Ettore Scola
Na foto,em primeiro plano, o citado erudito, já grisalho, e demais componentes da história.
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