Pela manhã, acordamos dispostos a uma longa viagem de BH para o Rio, a bordo do possante Mercury 1950, verde escuro, do papai. Na verdade, àquela época, a viagem era mesmo longa, pois a estrada, BR-3, não era totalmente asfaltada e, com isto, demorava-se muito mais para percorrer os 450 km. A radiosa manhã começou com o preparo do carrão no posto de gasolina da rua Aimorés. Encha o tanque, comandava o papai. Verifique os pneus, coloque água no radiador e veja o nível do óleo do motor. Carro pronto, fomos à casa do vovô Pedrinho para buscar tio Aureliano e sua mulher Naná, já com as malas prontas, na calçada, só esperando o Helvécio. O Aureliano usava um guarda-pó sobre o bem cortado terno de casimira inglesa e a Naná, um vestido mais simples, próprio para enfrentar aquela grande jornada.
Papai, minucioso, conferiu todo o serviço novamente e partimos da rua Pium-í nº 1972 para o Rio de Janeiro. Na saída, esquina da av. do Contorno com BR-3, observamos que o mato, na beira da estrada, estava bem alto e não permitia a visualização da única placa indicativa da saída para o Rio. Fomos às cegas e, por sorte, acertamos. Bom início.
Os primeiros quilômetros eram asfaltados e muito confortáveis, seguindo até o famoso Viaduto da Inconfidência, novinho, uma maravilha arquitetônica que, ainda hoje, apelidado “viaduto das almas”avança sobre um vale a mais de trinta metros de altura. Uma beleza! À última visão de um rio conhecido e a primeira provocação do Aureliano: “Naná, aquele é o seu rio...” “Por que, Aureliano?” perguntou ela, inocente. “Ele é o rio das Velhas!” - Há, há, há!
Ela não se abalou, pois, acredito que não tenha escutado.
No Mercury, muito confortável, iam o papai, como motorista e o Aureliano, na boléia, Naná e eu, no banco de trás. A conversa era muito animada na frente, pois o tio ia fornecendo uma descrição de todo o trajeto, comentava sobre o tempo, apontava monumentos e os descrevia: “Olhe que bonito cafezal, Helvécio! Esta região tem excelentes fazendas em plena produção. Naná, repare nas vaquinhas, pastando ali.” Ao longe, uma grande manada de vacas pretas e brancas, ruminava no pasto seco e agreste. “Aquele é o profeta Abdias,” na passagem por Congonhas. Ali, contou-nos a trágica história do Aleijadinho e suas obras, esculpidas magistralmente por um deficiente físico, negro, paupérrimo e faminto. Ele sabia de tudo e eu, menino, ouvia admirado aquelas manifestações de grande conhecimento, cultuada sabedoria e irônico humor. Coisa de gênio! Como se não bastasse, papai comentou que o Aureliano era formado em Medicina, em Farmácia e em Direito e falava, além do inglês e do francês, fluentes, também o alemão, e que tinha feito a apresentação de um trabalho científico na Academia Brasileira de Medicina no idioma germânico. E por exclusivo diletantismo. Diante desses comentários, ele sorria, vaidosamente feliz.
Não tivemos pneus furados, muito comum naquelas estradas esburacadas e poeirentas, nem qualquer avaria mecânica, também fáceis de acontecer, como entupimento do carburador, furo do radiador, vazamento de mangueiras, super aquecimento, entre outras encrencas.
A viagem foi, realmente, muito tranquila. Naquela época, as estradas chegavam às cidades e obrigavam os viajantes a passarem por dentro delas, literalmente. A ligação entre a chegada e a saída era a rua/avenida principal, que ia rasgando a cidade, atravessava a praça central, geralmente, em frente à Prefeitura e ia se afastando até os bairros mais distantes onde entrava, novamente, na rodovia. Era sempre assim. E, em Juiz de Fora, não fora diferente. Já uma cidade de porte médio e, portanto, sem aquela facilidade de travessia, possuindo diversos cruzamentos e nenhuma sinalização que nos conduzisse ao ponto de saída. Assim, resolvemos indagar ao primeiro habitante disponível que, encostado à sombra de uma árvore, ouviu atentamente. Aureliano perguntou: “Por favor senhor, onde é a saída para o Rio?” Na sua preguiça e simplicidade, o juiz-forano retrucou: “Ah, o senhor vai para o Rio?” Aureliano, irritadíssimo com a pergunta, muito vermelho, com a fala trêmula e quase babando de raiva lhe disse, dedo em riste: “Não, meu senhor, eu vou para a China!!!” E completou: “Vamos, Helvécio, ande, esse pobre coitado não sabe de nada.”
Vencemos as ruas e esquinas de Juiz de Fora sem mais perguntas, pois o homem estava possesso. Com alguma dificuldade, chegamos à estrada que, dali para frente, se chamava Rodovia União Indústria. Uma beleza de muitas curvas, viadutos e pontes, totalmente asfaltada até o Rio de Janeiro. Na altura de Petrópolis, por volta das seis da tarde, o Aureliano ordenou: “Vamos passar na casa de Santiago, pois quero cumprimentá-lo.” Referia-se à casa de seu genro, Francisco Clementino de Santiago Dantas, casado com a filha Edimê. Papai prontamente atendeu, pois seria uma honra para nós, conhecer o Primeiro Ministro do Governo parlamentarista brasileiro. E foi o máximo!
Como um mestre, Aureliano conduziu-nos pelas ruas, alamedas e canais da linda cidade e chegamos a uma enorme mansão clássica, arquitetura inglesa do século dezenove, com enorme jardim de acesso à porta, emoldurada por quatro colunas brancas num átrio. Soamos a campainha e fomos recebidos pelo mordomo, vestido num impecável terno preto, lenço branco no bolso. A recepção foi muito amistosa e formal. Afinal, não havíamos avisado sobre a inesperada visita. “D. Edimê está repousando e o Ministro está no Rio. Talvez venha para o jantar.”
Aureliano, cerimoniosamente, pediu que a avisasse que estávamos de passagem, ele, a mãe dela, com o primo Helvécio e o filho Roberto, de Belo Horizonte. O mordomo retirou-se, educadamente, e, após uns poucos minutos, voltou anunciando: “D. Edimê vai descer em seguida e pediu-me para convidá-los para o jantar, que será servido às sete horas. Podem esperar na biblioteca, se quiserem.” Fiquei boquiaberto. Nunca tinha visto uma biblioteca daquele tamanho. Aliás, nunca tinha visto biblioteca nenhuma, a não ser numa rápida visita aos livros guardados do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, para buscar algum escrito sobre plantas, pois iria fazer uma composição para o Dia da Árvore. Já era um arremedo de biblioteca, aquela coleção de livros.
Em meia hora, Edimê apareceu, muito arrumada e saudou os pais, com cerimônia, cumprimentou o primo e o filho e convidou-nos para jantar, dizendo: “Santiago avisou-me que não poderá vir do Rio, pediu-me para apresentar-lhes desculpas pela ausência e recomendou-me que o convidasse, papai, para fazer as honras da casa, sentando-se à cabeceira, no jantar!” Aureliano, honrado e obediente, dirigiu-se à mesa posta com toda pompa e circunstância. Tudo era surpresa para mim, pois nunca tinha visto uma mesa com pratos, talheres e diversos copos dispostos, milimétricamente, nos seus lugares, com enormes guardanapos de linho branco, chuleados e embainhados sobre a lindíssima toalha portuguesa do século XIX. Um luxo! Sentamo-nos nos lugares indicados e fomos servidos por um elegante maitre de librè, o mesmo mordomo, já paramentado para a nova função. Uma criada, também uniformizada, obedecia às ordens dele com precisão e servia os convidados de acordo com uma rotina pré-ensaiada, onde não faltava nenhum detalhe. Aureliano fez a prova do vinho com precisão e elegância e fartamo-nos de educação e finesse durante todo o tempo. Foi uma experiência e tanto! Após o café, tomei o primeiro licor da minha vida, um Drambuie, “derivado do Scotch Whisky”, comentou o tio sábio.
Aureliano e Naná aceitaram o convite para pousar na mansão e eu e papai retomamos nossa viagem para o Rio, por volta das nove da noite. E que noite!
Roberto Hermeto Brandão – agosto/2006
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